09 dezembro 2016

Uma "viagem" extraordinária

A melhor metáfora que se pode atribuir à história do homem é a de uma viagem. Toda a vida do homem primitivo está marcada pela viagem. A sua sobrevivência dependia de uma contínua caminhada. Era sempre preciso abrir um novo trilho, avançar pelas praias, pelos vales e pelas montanhas porque ficar parado num só lugar seria contranatura e perigoso. Escolher um único espaço para lar significava morrer de fome.
Nós, os humanos fomos caçadores-recolectores muito mais tempo do que temos sido agricultores, estima-se dez a quinze vezes mais. Só agora nos estamos a tornar numa espécie que vive sobretudo nas cidades. Se dissermos que isso só acontece há apenas um ou dois séculos, o nosso rasto de caçadores-recolectores torna-se muito mais longo.
A história humana começa quando deixamos de ser presa e caçador, de comer e ser comido, isto é, do deixar acontecer para fazer acontecer. Há cerca de duzentos mil anos evoluiu em África o Homo Sapiens com os cérebros do tamanho do nosso. Mas só há cerca de setenta mil anos, por circunstâncias ainda pouco esclarecidas, quiçá uma única tribo, ou apenas um muito pequeno grupo, partiram desse continente e iniciaram a grande viagem, num movimento de duração milenária que culminou na disseminação por todo o planeta.
Parecendo lenta, esta dispersão do Homo Sapiens foi muito rápida, se a compararmos com um milhão e meio de anos da do Homo Erectos. E assim feita a comparação é como se até ali o processo fosse mais ou menos linear e de repente acontecesse uma explosão.
Não se menospreze os nossos “egrégios avós”. Estes caçadores-recolectores tinham de ser capazes de fazer uma diversidade de coisas que o atual homem urbano, que é especializado numa única arte e ou ofício. Por isso estima-se que os atuais homens perderam cerca de um décimo do volume total do cérebro em comparação com o povo da última era glacial. É certo que, à altura, eliminaram alguns iguais e erradicaram outros seres vivos, mas de forma nenhuma comparável aos contemporâneos e horrorosos genocídios e destruições ambientais. Por isso, devemos estar conscientes de que os homens que saíram de África foram criaturas extraordinárias e não aterradoras.
Voltamos mais uma vez à alegoria da viagem. Estes homens sobreviveram em condições adversas que hoje face à comodidade dos novos tempos, mal podemos compreender. Tiveram de alterar repetidas vezes os seus comportamentos e hábitos para sobreviverem. O Paleolítico foi o tempo das camadas de gelo avançarem e recuarem pondo à prova os mais extremos limites. A sobrevivência do Homo sapiens face ao homem do Neandertal deveu-se à quantidade e qualidade de ferramentas que soube construir para fazer face à adversidade. A agulha e o equipamento de caça, particularmente a técnica do arremesso, foram as suas duas armas mais importantes e extraordinárias de sobrevivência. E por isso esta viagem, que aqui nos trouxe, resultou porque somos bons a adaptar-nos.
A partir do Neolítico, o homem torna-se sedentário para cultivar a terra e criar o gado. Graças à agricultura, a população mundial cresceu extraordinariamente. Ao deixar de andar de um lado para o outro, o bando de caçadores-recoletores instalou-se para cuidar de colheitas e animais, desenvolveu povoados, depois cidades e, por fim, civilizações.
Com mais humanos sobrou menos território para caça, e a agricultura tornou-se a quase única solução de sobrevivência determinando o êxito de toda a história da humanidade: os excedentes fizeram divisões de classes, soberanos e sacerdotes, exércitos, conquistas, revoluções… O reverso da moeda, que a civilização agrícola e pastoril acrescentou foram a complexidade das relações sociais, a multiplicação dos conflitos, o aparecimento de novas doenças, (as vértebras deformadas, dores de costas, os dentes podres, epidemias), até menos altura (estima-se menos 15 cm) e, consequentemente, menos tempo de vida (2 a 3 anos em média).
Ao contrário do que muito estudo de arqueologia afirma, cujo interesse focado na Europa, leva erradamente a pensar ser esta o umbigo do mundo, é o Oriente que vê nascer as primeiras grandes civilizações. O velho continente permanece habitado por pequenas comunidades, primordialmente povoados e abrigos. Estas coletividades usavam instrumentos de pedra e fabricavam pontas de setas, machados, mós, percutores, furadores, pesos de tear…, tornados indispensáveis na obtenção dos alimentos e no fabrico de vestuário. Mais tarde, com um desfasamento de alguns milhares de anos em relação ao Oriente, começam também a ser utilizados os primeiros metais.
Estas comunidades agrícolas do oeste da Europa, em que a caça continua a ser uma fonte importante da obtenção dos alimentos, cultivam os primeiros cereais, inscrevem nas pedras as suas vivências e memórias, veneram os seus mortos, a quem erguem imponentes monumentos construídos de pedras levantadas, que, por vezes, tinham um corredor de acesso e uma câmara coberta.
São alguns destes sinais que vos apontamos nesta viagem, sinais inscritos nas pedras e edificados com pedras, querendo com isso porventura alcançar a eternidade. São de uma beleza singela, clara e luminosa, sempre enquadrados de paisagens que nos tiram o fôlego, que nos permitem regressar às nossas origens e descobrir a essência da vida e da existência humana.
É este o mundo que o Dinis Cortes nos traz nesta surpreendente viagem do Primogénito. Elaborada de um fôlego, mas com grande mestria no uso das palavras e na descrição histórica: dos homens, das paisagens, dos instrumentos e das peripécias. Esta breve odisseia reflete uma imensa paixão pela região e pelos seus inúmeros vestígios pré-históricos.
Oexcesso de natureza” com que Torga legendou esta paisagem duriense está preenchida de pedras e grutas singulares, buriladas de gravuras, de que o Côa é a obra maior porque manifestamente muito grandiosa e sublime, mas também de pinturas e sinais misteriosos, salpicada de vestígios e artefactos que o olhar atento pode observar...
Este livro é também o resultado de muitas caminhadas. Considero-me um afortunado por ser companhia do Dinis Cortes nestas jornadas inolvidáveis para o desfrute da natureza e dos sinais que ela nos oferece. Tive o especial privilégio de contar com um guia douto, entusiástico e entusiasmante. Estas caminhadas, sempre cheias de marcas do passado, estão ali ao alcance de todos os sentidos e da imaginação instruída para um total desfrute.
Este livro é uma viagem pela desejável natureza humana. Nasce de uma inquietação interior. Uma coluna de fumo visionada no horizonte predispõe para a aventura e para uma singular jornada feita de extraordinárias descobertas, pautadas pelo desejo do saber e a salutar convivência social. O Primogénito é um jovem bravo, hábil e artista que inicia uma viagem em que a curiosidade e a aventura o norteiam.
Este livro é uma viagem como deveria ser a nossa vida: o mérito e a procura da sabedoria são o ponto de partida; o bem-fazer e a competência formam o itinerário; e o ponto de chegada conflui na sua realização pessoal, que é também a dos outros. E se alguma lição se pode extrair é a de que o homem se realiza na hierarquia da idade e da competência, e evolui no contacto com o outro, na troca de saberes e técnicas e no confronto de opiniões.
Podemos concluir que esta só aparente humilde viagem é, no entanto, uma coisa bem séria, e posso até parafrasear Garrett, n´As viagens na minha terra, “eis aqui a crónica do passado, a história do presente, o programa do futuro”.
Convido-vos a ler este livro para uma viajar no tempo, para, como Saramago, ver o que não foi visto, ou então para ver outra vez o que já foi visto, porque o que se vê no verão é sempre diferente do inverno; porque a poesia que brota de nós na primavera nunca é igual à sentida no outono, porque o que se vê de dia não é igual ao observado de noite, porque o que traduz a leitura do texto não é o que a nossa imaginação alcança, mas aquilo que somos.
Convido-vos a subir à Serra de Passos, marca essencial e natural ponto de partida para esta aventura da descoberta porque aqui se encontra um dos maiores e impressionantes santuários de vestígios do homem do Neolítico. Convido-vos a aí perscrutar os horizontes e a ver nascer a vontade da descoberta e do encontro com o outro. Convido-vos a visitar a Pala Pinta em Alijó, o Cachão da Rapa em Ribalonga, Carrazeda de Ansiães, a extraordinária Fraga da Aia em São João da Pesqueira e o Abrigo Pré-histórico de Penas Roias em Mogadouro para compreender toda a magia que, desde tempos imemoriais, está inscrita nos nossos genes. Convido-vos a viajar aos dólmenes da Areita e do Vilarinho da Castanheira para uma reflexão sobre a intemporalidade e como tornar esta breve viagem que todos empreendemos no nascimento, a tornar-se uma “experiência sem par”.   
Como escreve Torga, “viajar num sentido profundo é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em cansaço, em movimento pelo mundo além”. E eu, que já tenho alguns “espantos” de bastante Europa visitada, ainda não encontrei viagens mais reconfortantes que as viagens na minha terra.

Esta viagem pode começar hoje e aqui, venham daí!... 

Sem comentários: