19 abril 2012

Bicos, carne de porco e outros peguilhos


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De tempos a tempos, matava-se uma galinha. Tudo um ritual. A sua sentença de morte era devida às razões mais diversas: a idade, o tamanho, a maldade, a  ausência da postura de ovos, o livre arbítrio de uma escolha fútil. Era filada, à má-fé, dentro da capoeira, à saída ou numa distração momentânea. Bem presa debaixo de um braço, depenava-se-lhe a crista para o golpe fatal, que a faca afiada e sem dó cortava na horizontal de um só golpe. Aparava-se o sangue numa malga. A galinha ou o frango dava para várias refeições, consoante a largura da família. Do “de dentro”, coração, moela e fígado, a que se juntavam as asas, as pernas e as coxas fazia-se uma arroz divinal condimentado com o sangue, o azeite, o vinagre e a salsa da horta. O restante era quase sempre guisado na panela de ferro, numa mistura de azeite, cebola, alho, salsa e louro; fazia um molho delicioso e aconchegava as batatas cozidas, que sabiam tão bem ou melhor que a carne, distribuída entre todos, de forma parcimoniosa.
O peru reservava-se para uma época especial, o Natal e a Páscoa, quase sempre assado no forno comunitário a que se juntavam as “batatinhas” assadas.
Uma, duas, três vezes por ano comprava-se um pouco de ovelha, de cabra, de borrego ou cabrito, ali morto na loja pelo “matador” da aldeia, que o comprava ao pastor e o distribuía na razão das posses e da vontade dos compradores. Quase sempre era guisado ao lume e comido com as batatas cozidas.
De resto, a carne de porco era o principal “peguilho” das nossas gentes. Em todas as casas se matava o "requinho", cujo tamanho era diretamente proporcional às posses de cada um. A festa social da matança era condimentada pelo sangue cozido e os rojões do soventre- Seguia-se o dia das alheiras, também ele episódio sociável de partilha de afeições e sabores: comiam-se os voluptuosos ossos da suã acompanhados das celestes “migas” polvilhadas de canela e regadas com a calda que os ajudou a cozerem. A elaboração dos grandiosos salpicões e das graciosas chouriças de carne era uma tarefa mais privada. No entanto sempre se permutavam uns “chichos”, a deleitosa carne de a vinha-d´alhos, pelos vizinhos e amigos chegados. Em largos dias se assistia a esse ritual tão natural, a descida da vara do fumeiro de um ou outro agradável enchido para as brasas ou a panela para acompanhar as batatas da horta ou o pão do forno. O resto repousava na salgadeira. Dela se iam retirar os presuntos para serem apimentados, fumados e curados. Cortado a golpes de canivete, misturava-se com um bom pedaço de trigo ou centeio num apetite grandioso a que não podia faltar uma boa “pinga”. Sobravam os pés e as orelhas que ajudavam a fazer cozidos e feijoadas de “comer e chorar por mais”. Todos sabem do que falo?
Esgotadas as salgadeiras, só a Páscoa trazia um pouco de cabrito e as ceifas e malhadas um pedaço de ovelha e cabra, intervalada com um ou outro bico caseiro, até à grande festa da carne do porco, que era a marrã da festa da Santa Eufémia. 
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(do livro "Selores... e uma casa" a sair brevemente)

7 comentários:

Anónimo disse...

Prof. JAM
Outros tempos aqui ao de leve bem retratados.
Saudades certamente ou o prenuncio do regresso?
Estarão todos preparados?

Ateu Versão/2012

Anónimo disse...

Um texto magnifico. Retrato fiel da minha infância na aldeia transmontana. Parece que sinto na boca estes sabores.

Anónimo disse...

Também nesses tempos já andavam as peixeiras pelas freguesias a vender o seu chixarro e a sua sardinha,a sra gina do TUA vendia os peixinhos do RIO TUA.
Em muitas casas uma sardinha dava para dois até se calhar para três.
Os tempos mudaram,e esses que comiam uma terça parte de uma sardinha são aqueles que hoje não as comem, porque acham que é peixe de pobre.O mesmo se passa com o pão.Coziam-se de cada vêz três alqueires de centeio,porque trigo era raro vêlo nas mesas so se houvesse alguma visita.Esse pão depois de cozido era emprestado aos vizinhos que depois quando coziam o tornavam,faziam assim para não ficar tão duro.Enquanto durasse esse pão comia-se.Hoje aqueles que antigamente o comiam de quinze dias não comem pão que não seja do dia como também aqueles que nem de faca precisavam porque não tinham pão para partir.
Não sei se se o nosso POVO não voltará a esses tempos,quase tenho a certeza que sim.
São estas importâncias quem mais vai sofrer,de burro para cavalo vai-se bem o pior é ter que andar de cavalo para burro.

Anónimo disse...

"Peguilhos"

Com receio de prejudicar a beleza da arte descritiva que é o texto de José Alegre Mesquita, eu não me afoito a realçar-lhe todos os primores, porque estes melhor se avaliarão em leitura de seguida.

No entanto, aviso não resistir à tentação de, ao jeito de infantil entusiasmo que vai apontando com o dedo e exclamando – olha, ali, que bonito!, não resisto a chamar a atenção para o lindo quadro em que a paleta do nosso Amigo José Mesquita soube, com encantadora simplicidade, dispor e combinar as tintas.

Quero dizer, se a encantadora descrição feita pela sua pena nos encanta pelo que nos pinta no quadro geral do descritivo e se esse quadro vale por todos os seus traços, tons e matizes, bem pode a nossa vista demorar-se no exame da minúcia.

JAM, empregando termos simples (como convém) mas felizes, leva-nos imediatamente o espírito à fantasia da descrição imaginosa… estamos mesmo a ver a galinha (filada à má fé) a espernear debaixo do braço… estamos mesmo a ver “a descida do fumeiro de um ou outro agradável enchido para as brasas ou a panela para acompanhar as couves da horta ou o pão do forno”… estamos mesmo a ver “o resto a repousar na salgadeira”!

E a descrição prossegue admiravelmente simples na sua grandeza, naturalíssima de si mesma, um esforço como se a própria “paisagem” se esgueirasse de si mesma e viesse misteriosamente transformar-se nas tintas do quadro pintado por JAM

Abraço de “incentivo”… espero pelo livro.

Carlos Fiúza

Anónimo disse...

Obrigado JAM ,por estas belas recordações do passado!

mario carvalho disse...

Zé Mesquita .. não preciso de o felicitar .. sabe o que sente e diz o que sente ..

também havia piolhos , é certo,

mas viam-se e sentiam-se.. hoje os parasitas assumem-se como benfeitores e iluminados.. e depois .. fomos nós que tivemos a culpa por não termos reagido e pagamos tudo com a vida e a miséria

abraço a todos os que não desistem

Anónimo disse...

A sua pena é divinal! VAI MESMO AO ÂMAGO DA QUESTÃO. pARABÉNS!