22 fevereiro 2007

Linha do Tua, espelho do interior

O acidente ocorrido na linha do Tua, para além da tragédia (o mais importante) que culminou na morte de três pessoas, é também uma grande metáfora do interior de Portugal. Isto é, tal qual a caduca locomotiva e a velha via férrea, esta é também uma região desprezada pela administração central na falta de investimentos estruturais, que resultam numa população envelhecida e a decrescer, fracos índices de desenvolvimento, um património ambiental, patrimonial e humano votados ao abandono e à inexorável morte. Assim, naquela carruagem, como refere VAV, para além dos cinco infortunados passageiros viajava todo um povo, o transmontano.

A composição que caiu ao rio Tua num local íngreme, pedregoso, inóspito confirmou um país que caminha a duas velocidades. Um que vai construir uma das linhas-férreas mais avançadas no mundo, o TGV, mobilizando incontáveis recursos, sem ainda ter discutido de uma forma lúcida e desapaixonada a sua completa utilidade, e um outro, que possui uma linha de comboios decrépita e abandonada que atravessa um dos mais belos vales do país, que se preparam para o alagar, perante a força imparável do pretenso “interesse nacional”, retirando assim à região um dos seus mais valiosos patrimónios. Deste lado ainda se demora uma hora e quarenta minutos a percorrer cinquenta e quatro quilómetros num transporte público, numa velocidade média de cerca de trinta quilómetros à hora; do outro vão disparar comboios a mais de trezentos.

A ruptura geológica que desprendeu as pedras que abalroaram a infortunada locomotiva despertou várias angústias, enlutou três famílias e mostrou ainda a tristeza da nossa solidão. Deste lado há muitos locais onde não funcionam telemóveis, há bombas de combustível que não conseguem abastecer helicópteros de salvamento, há hospitais centrais que ficam a muitos quilómetros de distância e acrescentam aflição a quem necessita de cuidados médicos.

A catástrofe ocorrida entre as estações do Castanheiro e de Santa Luzia no concelho de Carrazeda de Ansiães mostrou à saciedade a impotência dos seus naturais neste pedaço esquecido e muito longe do resto do país. A linha ferroviária transfigurada de metropolitano tem-se mantido activa graças, particularmente, à vontade da câmara municipal de Mirandela. Um projecto que José Gama idealizou e concretizou num “caricato” metro de superfície (era o segundo do país, lembram-se?), considerado à altura “ridículo” por muito sério e sensato cidadão. O edil mascarou de modernidade o transporte ferroviário atribuindo nomes de sonantes estadistas europeus às estações da cidade, pintou de verde velhas locomotivas, adquiriu vontade política do governo central em troca de muitos votos locais; e desta maneira se obstou ao encerramento do troço entre Mirandela e a estação de Foz-Tua. Do outro lado, há metros de verdade que custam milhares de milhões de euros, com execuções orçamentais que ultrapassam muitas vezes todas as previsões e têm ainda muitos gestores, principalmente políticos, a auferirem chorudos vencimentos.

A certeza que fica é que os dois feridos e principalmente os mortos não farão somente parte de uma qualquer estatística nacional, são parte de uma comunidade que se mostrou constrangida e pesarosa na desgraça, solidária no apoio. Um facto é necessário relevar: o grande empenho das equipas de busca, consubstanciadas no líder que coordenou as operações, o senhor governador civil de Bragança. A concentração de órgãos de comunicação social presentes, nomeadamente as televisões, propicia protagonismos vaidosos; a necessidade do governo central de dissimular eventuais críticas e descontentamentos redobra pseudo empenhamentos, porém não pode deixar de atribuir mérito a Jorge Gomes que sempre se manteve no local, incentivando as equipas, dando ânimo às famílias de forma a mitigar a sua dor e proporcionando aos transmontanos sinais de esperança.

O fim da Linha do Tua pode ter começado a ser traçado com este acidente. Sobre ela pendem diversas ameaças de encerramento, entre outras, a derivada da falta de rentabilidade, segurança e utilidade e a da construção de uma barragem para aproveitamento hidroeléctrico. Os nordestinos não querem também um troço ferroviário inseguro e mortífero, porém como diz Manuel Carvalho no Público: “uma obra prima da engenharia que cruza um vale espantoso, não se pode desperdiçar”.

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