14 abril 2013

O Capital Financeiro: Carlos Fiúza



O Capital Financeiro

Temas:
1- O conceito de Capital Financeiro
2- Preconceitos populares, mistificações pequeno-burguesas e antissemitismo
3- O Capital Financeiro e o marxismo tradicional
4- Trabalho, crédito e crise
5- Funções do Capital, crédito estatal e pequena burguesia secundária

Introdução

Quando o teórico social-democrata Rudolf Hilferding publicou, em 1910, a sua principal obra, O Capital Financeiro, não estava, ele próprio, consciente das perfídias deste termo.
Para ele não se tratava de uma crítica ideológica, mas apenas de uma análise do processo capitalista da reprodução sob as (nesse tempo) novas circunstâncias. No centro da investigação estava o papel do chamado “capital que rende juros” ou da "superestrutura do crédito" (Marx). Como é sabido, ao lado do capital industrial e comercial, há o capital de crédito (descrito por Marx, particularmente no 3º livro de “O Capital”).
Todo o capital é, primeiramente, capital dinheiro, ou seja, dinheiro não gasto no consumo, mas "investido" de forma capitalista. A forma destes investimentos é contudo diferente. O capital industrial e comercial (e também o das empresas e serviços) é investido em força de trabalho, edifícios, máquinas, etc. para se valorizar através da produção ou distribuição de bens.
A utilização de força de trabalho adiciona mais-valia ao capital dinheiro original, e esta é realizada com a venda dos produtos no mercado. O capital de crédito, por sua vez, é um capital dinheiro, que não se valoriza pela produção de bens, mas se empresta ao "preço" do juro.
Trata-se realmente, apenas, de uma forma derivada de mais-valia, porque os juros (e naturalmente o reembolso) do capital dinheiro emprestado apenas podem ser recebidos se a instância tomadora do crédito (geralmente um capital industrial ou comercial) aplicar esse dinheiro na produção capitalista material de mercadorias e esta se realizar no mercado. Tal significa, apenas, que o capital produtivo tem que dividir com o capital de crédito (ou capital que rende juros) os "despojos", ou seja, a mais-valia. A mais-valia divide-se em lucro do empresário e juros, pelo que o juro não é, afinal, nada mais que uma parte retirada ao lucro do empresário.

1- O conceito de Capital Financeiro

Um resultado da investigação de Hilferding era que, agora, o papel do capital de crédito no curso do desenvolvimento capitalista aumenta cada vez mais. Isso pode ser explicado pelo facto de que, com a cientificização e tecnicização progressivas da produção, os custos prévios necessários se tornam cada vez mais elevados na forma de investigação, desenvolvimento, maquinaria etc., ou seja, um posto de trabalho rentável para o capital torna-se cada vez mais caro. Isso leva a que o capital individual seja, cada vez mais, substituído por sociedades anónimas (no século XIX assim aconteceu, paradigmaticamente, com a construção dos caminhos de ferro). Muitos acionistas aplicam em conjunto o seu dinheiro, de modo a que os custos prévios possam ser pagos; mas eles não passam de meros acionistas, enquanto a direção real da empresa é entregue a uma gestão contratada. Por outro lado, estas grandes sociedades, com base na sua solvência, podem tomar, também, quantidades de crédito substancialmente maiores do que os capitais individuais e assim aumentarem, em conformidade, a força da produção.
O capital de crédito, que não consiste na parte de capital dinheiro próprio, posto de lado por não utilizado como capital produtivo mas nas economias da sociedade inteira, concentra-se, entretanto, no sistema bancário. Logicamente, com a crescente importância do crédito também cresce a importância dos bancos. Na mesma medida em que o capital produtivo (isto é, o que extrai realmente mais-valia) se socializa cada vez mais através de ações e se torna dependente do crédito, perdem os bancos o seu anterior papel passivo como fornecedores de dinheiro e participam eles próprios, ativamente, na direção do capital produtivo, quer como proprietários do capital em ações, quer como controladores do crédito massivamente concedido.
O capital dinheiro administrado pelos bancos assume, assim, um duplo caráter: para os proprietários dos depósitos de banco, dos recursos, etc. "mantêm-se sempre na forma do dinheiro, que é aplicado na forma de “capital dinheiro que rende juros" (Hilferding, O Capital Financeiro). Porém, como as aplicações dos bancos já não são administradas passivamente, mas realmente aplicadas na esfera da produção (sob controlo desses mesmos bancos), na realidade "a maior parte... do capital aplicado pelos bancos é transformada em capital industrial, produtivo... fixada no processo de produção" (Hilferding, ob. cit.). É "capital à ordem nos bancos e em utilização na indústria" (ob. cit.).
A este capital bancário, com o duplo caráter de capital que rende juros (para os depositantes) e de capital produtivo (sob o controle dos bancos), chama Hilferding capital financeiro.
2- Preconceitos populares, mistificações pequeno-burguesas e antissemitismo
Com a importância crescente do crédito e dos bancos, nasce uma específica "crítica do capitalismo pequeno-burguesa”, que por si se fixou no capital dinheiro que rende juros e pôde retomar outra mais antiga execração contra a "cobrança de juros" ancorada na maioria das grandes religiões (no cristianismo, tal como no judaísmo e no islão).
Marx observou que no "preconceito popular" o capital que rende juros é considerado como o capital real, porque aparentemente lhe é inerente a qualidade mística de criar mais dinheiro a partir do dinheiro (em economia política cada receita regular é também considerada como o "juro" de um capital dinheiro, não se distinguindo, assim, em princípio, entre tipos diferentes de rendimento e de formas de capital). Naquela pretensa expressão "crítica" aparece o capitalismo como uma simples organização de usurários emprestadores de dinheiro, que exploram a parte da humanidade que produz.
Se o capital que rende juros não fosse mais que isso (como mais ou menos pensava Proudhon) então já não haveria capitalismo. Ele (Proudhon) queria introduzir um "dinheiro trabalho", não mutuável nem colocável a juros. Também a posterior, e até hoje, a sempre repetida utopia do dinheiro de Silvio Gesell está na mesma linha: Gesell queria introduzir uma "moeda redutível", que perdesse constantemente o valor se não fosse gasta dentro de um determinado período em meios de produção ou consumo. Assim se impediria o entesouramento do dinheiro e a sua transformação em “capital que rende juros”.
Esta ideologia põe de pernas para o ar as circunstâncias reais. O capital que rende juros não é o capital autêntico, mas somente uma subfunção secundária, derivada do capital. Empréstimos de dinheiro e crises de dívida ocorreram já, ocasionalmente, na antiguidade, mas somente nas margens de uma reprodução agrária de modo nenhum substancialmente baseada no dinheiro. O moderno modo capitalista de produção não nasceu do capital que rende juros, mas da fome de dinheiro da máquina militar proto moderna ("a economia política das armas de fogo") que, com o objetivo de financiar a produção de canhões, a organização dos exércitos, etc. monetarizou os tributos feudais e através da violência da colonização interna e externa (plantações baseadas no trabalho escravo, casas de detenção e de trabalho, manufaturas nacionais etc.) transformou a população no "material" do "trabalho abstrato" (Marx) para a valorização do dinheiro. A lógica desta máquina "produtiva" de dinheiro, finalmente emancipada do objetivo original, havia de "privatizar-se" e transformar-se no contexto sistémico como nós hoje o conhecemos e interiorizamos.
O sistema da valorização do dinheiro contém o imperativo do crescimento incessante. O fim, em si mesmo original (cada vez mais dinheiro para a insaciável “máquina” da revolução “militar" proto moderna), transformou-se na Auto finalidade sistémica abstrata de fazer do dinheiro mais dinheiro, através do processo de valorização económica empresarial.
A reprodução física e cultural da sociedade é somente um apêndice deste processo de fim em si mesmo. Deve crescer cada vez mais a quantidade dos bens (que, sendo indiferente o conteúdo, se tornam cada vez mais destrutivos, e já a produção original de canhões foi um ponto de partida destrutivo), não de acordo com as necessidades, mas apenas na medida em que "representa" a Auto finalidade da valorização do dinheiro.
Consequentemente, dado que cada estágio alcançado da produção capitalista apenas constitui um ponto de partida para um crescimento adicional, a reprodução capitalista em escala constantemente aumentada deve mover uma massa total sempre maior. Sendo suficiente, por exemplo, a um nível ainda relativamente baixo, a produção de, digamos, mil frigoríficos (ou quaisquer outros bens) para alcançar um crescimento de um por cento, num ponto de partida mais elevado será então necessária a produção de dez mil, cem mil, um milhão de frigoríficos para alcançar o mesmo crescimento percentual.
O que se aplica ao conjunto da sociedade aparece também no plano da economia empresarial. O facto de os custos prévios crescentes cada vez menos poder ser coberto, apenas, com os lucros recebidos (antes exigirem, cada vez mais, o recurso ao dinheiro das poupanças) é incontestável. Portanto, o caso não é que o capital que rende juros venha de fora, como um vampiro, pura e simplesmente sugar a base produtiva, mas exatamente o contrário: sem o sistema de crédito pararia a produção capitalista, sempre crescente.
As pequenas empresas têm, normalmente, tão pouco capital que, em geral, têm de se endividar em larga escala para poderem produzir. Após o pagamento dos juros e das amortizações pouco sobra para o próprio lucro. Neste meio é fácil instalar-se o sentimento de que já quase "se trabalha só para os bancos". Esquece-se que não se poderia ter começado sem os bancos ou muito rapidamente se teria sucumbido no mercado. A ideia que poderia haver uma rápida prosperidade do "trabalho produtivo" honesto (sem o "vampiresco" capital que rende juros) é pura ideologia baseada na mentalidade de pequena empresa. Não é por acaso que as utopias pequeno-burguesas do dinheiro à moda de Proudhon ou de Gesell têm em vista apenas “as empresas familiares artesanais, a pequena produção secundária de serviços, etc.”, enquanto a grande produção, socializada capitalisticamente e os seus agregados infraestruturais, ficam fora do horizonte deste anti capitalismo reduzido, cheio de ressentimento.
Esta ideologia, virada apenas contra o capital que rende juros (em vez de contra o modo de produção capitalista), esteve, desde início, atravessada pelo moderno antissemitismo. O anti judaísmo, religiosamente motivado da chamada idade média cristã, transformou-se, com a chegada da reprodução socializada pela monetarização, na proto moderna "economia política das armas de fogo" e na origem do moderno sistema produtor de mercadorias. Embora a proibição dos juros também existisse na religião judaica, os judeus, na idade média, foram forçados a atividades na (marginal) esfera da circulação e, em alguns casos, também como emprestadores de dinheiro por força da estigmatizante exclusão dos ofícios ligados à produção. Eles sofreram, portanto, uma dupla discriminação pois ainda foram demonizados como negros exploradores e usurários (por causa deste modo de vida a que se viram obrigados).
Na tremenda primeira vaga da monetarização histórica (isto é, da instalação do princípio da valorização) esta imputação pôde ser instrumentalizada em proveito da constituição ideológica. Lutero não foi só um propagandista dos massacres de camponeses; ele também criou o antissemitismo moderno, com expressa referência ao capital que rende juros. A filosofia iluminista, (herdeira do protestantismo), também, em certa medida, adotou o sentimento antissemita na sua base.
Com a ajuda das teorias pseudocientíficas do racismo, nasceu uma "teoria do capitalismo", irracional, muito divulgada entre a “intelligentsia” do século XIX. Já a maioria dos socialistas utópicos do início do século XIX e, mais tarde, gente como Proudhon (e também Bakunin) eram abertamente antissemitas. E esta síndroma antissemita, ligada à falsa redução do conceito de capital ao “capital que rende juros”, lançava as suas raízes sociais: em primeiro lugar, justamente, entre as camadas pequeno-burguesas da época.
Neste contexto seriam criados (e condensados) os “clichés” antissemitas até hoje atuantes: anonimato do mercado mundial como "conspiração judaica", domínio oculto da sociedade, dos “media”, etc. através dos "colossos financeiros judaicos" (Rothschild), no minar do sentimento nacional pela "intelectualidade judaica sem raízes".

(continua)
Carlos Fiúza

4 comentários:

Anónimo disse...

Venha o resto para eu poder fazer uma crítica completa e demolidora.
JLM

Anónimo disse...

Nem posso esperar.

Fernando Gouveia disse...

Este artigo promete, CF! A avaliar pelo índice. Para já, registo a excelente exposição, e aproveito para, desde já, lhe deixar uma primeira nota: os chamados"clichés antisemitas" podem encontrar algum apoio no facto que bem explicou de terem sido sobretudo os judeus que inventaram tudo na técnica financeira. Não apenas "o capital que rende juros", mas também o financiamento dos orçamentos régios a troco do mandato para serem eles os cobradores dos impostos. E talvez seja esta função de cobradores de impostos por mandato ou concessão régia que lhes grangeou maior acrimónia por parte das populações. E também é verdade que os grandes grupos financeiros foram desenvolvidos principalmente por capitalistas judeus. Também é verdade que esses grupos financeiros exercem uma fortíssima pressão sobre alguns governos (diz-se, por exemplo, que nenhum Presidente dos Estados Unidos é eleito se não tiver o apoio do "lobby" judaico de Nova Yorque).
Pessoalmente, entendo que partir disso para a afirmação de uma conspiração universal é uma lógica abusiva. Sobretudo porque os capitalistas judeus não são melhores nem piores que os outros, sejam eles europeus, árabes, africanos ou asiáticos. O sistema capitalista tende a reforçar-se, a concentrar-se e, por isso, a ganhar poder financeiro e consequente influência sobre o poder político. A isso deve responder-se com uma democracia forte e participada, feita de cidadãos formados e de eleitos responsáveis que controlem, de facto, os grupos financeiros.
Entendo que a cimeira de Davos, por exemplo, é uma assembleia onde prevalecem os interesses financeiros e onde os políticos são convidados não para marcar as balizas da actividade económica e financeira mas para escutar as ordens dos grandes grupos.
O que se passa actualmente na Europa é também uma sobeja demonstração da luta entre o poder financeiro e o poder político. O que é chocante é que a comunicação dos responsáveis políticos utiliza a argumentação dos grupos financeiros. A lógica dos governos instalados é a dos mercados e não a dos povos. Repare, por exemplo, nos diferentes discursos da actualidade: há um discurso daquilo que eu chamaria os economistas institucionais dos mercados (bancos centrais, administradores de bancos, auditores, agências de rating, quadros do sistema financeito internacional como os do FMI, da OCDE, do BCE, etc), que afirmam que não há alternativa ao mercado. Mas há também, embora menos audível, o discurso dos que eu chamo os humanistas, que acentuam o dever dos governos para com os seus povos de governarem de acordo com os pactos de poder consubstanciados nas leis fundamentais. A rebeldia do governo português à fiscalização constitucional dos seus actos foi um bom exemplo, que coloca a questão: afinal quem manda nos governos? O povo ou os mercados?
E já agora: E quem são os mercados?

Espero o desenvolvimento da sua exposição que, estou certo, me dará muito prazer a ler.

Anónimo disse...


Meu Caro FG

Perfeitamente de acordo consigo:

"O que é chocante é que a comunicação dos responsáveis políticos utiliza a argumentação dos grupos financeiros. A lógica dos governos instalados é a dos mercados e não a dos povos".

Com efeito, também sou dos que pensam que os "humanistas" (como lhes chamou, e bem) devem ter a sua palavra (e breve).

Obrigado pelo seu comentário.
CF

PS Os mercados devíamos ser todos nós.