28 março 2013

Páscoa na aldeia



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As grandes barrelas às habitações eram feitas por altura da Páscoa. As casas eram tratadas de alto a baixo - varriam-se com as vassoiras de giestas. Nada escapava: as pedras do lar, a chaminé, as escadas, os sobrados, as farroncas nos cantos mais altos das paredes, as portas de entrada e mesmo as ruas. A chaminé esfoliava-se com a gilbardeira. As tábuas dos sobrados esfregavam-se a sabão e água com as escovas de piaçá. Limpavam-se as lojas dos animais e os quinteiros dos estrumes que se depositavam nas terras para a semeadura das batatas e a plantação das hortas. Os colchões de palha tiravam-se das camas de ferros, esvaziavam-se do colmo meio desfeito, arejavam-se, lavavam-se, para, de novo, se encherem da palha de centeio, neles colocada com habilidade e a ajuda de uma cruzeta feita de uma vara comprida e bifurcada.
Na manhã do domingo de Páscoa, faziam-se também as limpezas ao corpo, para muitos a única do ano: acendia-se o lume logo pela manhã e enchiam-se os maiores potes de ferro e caldeirões de lata com água; despejavam-se nas bacias da roupa, temperavam-se com água fria dos canecos cheios trazidos à cabeça do fontanário, e lavavam-se os cabelos e a parte de cima dos corpos com água e sabão – a mãe ou os irmãos mais velhos ajudavam a deitar um jarro de água pela cabeça para tirar os restos de sujidade e sabão; a água restante servia para lavar as pernas e os pés.
Assim lavados e penteados, de risca ao meio, quase sempre se estreava farpela nova e se calçavam os sapatos das festas. Todo o vestuário era feito pela costureira, pelo alfaiate ou comprado na feira da vila. Saía-se para o adro para ver e ser visto. Nos bolsos das crianças a moeda ou a nota do padrinho trocada pelo ramo de oliveira do domingo anterior e pelo pedido “deite-me a sua bênção”, tornava-as sorridentes e as mais felizes do mundo. Depressa trocavam o pecúlio pelo copo da laranjada, os tremoços e a mão cheia de doces na taberna. 


Se o Natal era a festa da família, a Páscoa era a festa da aldeia. A sua preparação começava com a elaboração dos folares e dos económicos e a cozedura nos fornos comunitários. Havia os folares doces e os de carne. Os doces comiam-se ao pequeno-almoço com o café, ou com um bom cálice de vinho tratado, que “ajuda a cortar a doçura”, diziam. Os de carne feitos com as chichas do porco incluíam a chouriça, o salpicão, o presunto e o toucinho, chamávamos-lhe carne gorda, que emprestava à massa um sabor divinal. Os económicos, na forma de montinhos polvilhados de açúcar, duravam longos dias e eram sempre um dos melhores mimos que se metia no saco da escola para o lanche do dia.
A missa pascal era obrigatória, antecedida dos três dias de penitências, jejuns, vias-sacras e do silêncio dos sinos que anunciavam, tristemente, ao meio-dia de quinta-feira a paragem no trabalho e, só despertavam na tarde de sábado e mais tarde na aurora de domingo, em tom festivo. À Eucaristia seguia-se o almoço melhorado que quase sempre incluía o borrego ou a ovelha, assados ou guisados, e o delicioso arroz doce, à sobremesa. À tarde, o compasso visitava todas as habitações para o beijar da cruz, acompanhado da algazarra da criançada, que pululava de casa em casa em busca dos “doces”, e do murmúrio de muitos que se visitavam em busca dos mimos e dos afetos para a boca e para a alma. 
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do livro "Selores ...e uma casa)

2 comentários:

Anónimo disse...

Descrição sucinta, singela e verdadeira da Páscoa de outros tempos, ou, da verdadeira Páscoa.

Ateu versão 2013

Anónimo disse...

A verdade,se está em algum lado, é na mudança, não no fixo!Isso não quer dizer que a verdade de outros tempos não nos seja agradável.
JLM