Em todos os povos antigos e modernos houve e há termos de
calão ou de gíria, que os espanhóis chamam geringonza,
os italianos gergone ou gergo, os franceses jargon,
os ingleses slang ou vant, os alemães Rotwelsch,
etc., etc.
Em todos os tempos existiram linguagens secretas,
convencionais, peculiares a seitas, e, portanto, ininteligíveis aos que a tais
seitas e raças não pertenceram nem pertencem.
O protótipo de tal linguagem é a dos ciganos, até porque a
nossa palavra calão deriva, segundo
Adolfo Coelho, do cigano de Espanha caló,
“que é um dos nomes com que os ciganos se designam a si próprios e com que os
espanhóis designam a língua dessa raça”.
Não vem a propósito mostrar que as palavras com que se
designa o calão, tais como gíria, argot, jargon, etc. são verdadeiros mistérios
quanto à origem, e que muitos filólogos, nacionais e estrangeiros, se vêm
atónitos ao tomarem para estudo esse e outros problemas relacionados com o
calão.
Vem a propósito, sim, mencionar o facto curioso de a nossa
expressão popular, ver-se grego, se
relacionar com os ciganos. A sua vida cheia de dificuldades, perigos,
aventuras, perseguições, deu lugar a que se
veja grego quem sofra percalços ou se veja neles.
Calão nomeia, assim, toda e qualquer linguagem secreta ou convencional usada
em ambientes onde se acoitavam ou acoitam os que vivem à margem da sociedade
legalmente constituída e, por isso, o termo se aplica especialmente ao
palavreado “dos vadios, dos rufias de todos os tempos”, infelizmente.
Sendo a linguagem a expressão da vida, compreende-se
perfeitamente a precisão de, nos vários modos de vida, se criar linguagem
particular.
Para encobrir mistérios, para ocultação de segredos, para
combinação de ações, enfim, para sua defesa própria, os perseguidos pela “lei”
sempre criaram termos misteriosos, secretos, impenetráveis.
É ainda calão ou gíria a linguagem peculiar a classes, a
profissões, a ofícios, isto é, o vocabulário particular ao modo de vida de cada
qual.
Note-se que, neste último caso, os termos especiais vêm da
necessidade de nomear com precisão os objetos, os trabalhos, etc.
Mas às vezes criam-se termos burlescos dentro de cada
ambiente.
Quem não conhece, na gíria escolar, por exemplo marrar, empinar a lição, isto é,
decorá-la? Há ainda outra maneira de dizer - encornar!
Foi reconhecido por todos os investigadores estrangeiros que
o calão propriamente dito, isto é, a linguagem secreta, consiste no emprego não
só de termos criados fantasiosamente, mas também de termos antigos da língua
geral ou até de línguas mortas, deformadas pela diminuição, pelo acréscimo ou
pela transposição de sons, pela fusão de vocábulos, pelo uso de sufixos, pelos
jogos de palavras, anagramas e abreviações, pelo recurso a metonímias, a
harmonias, enfim, por toda a sorte de figuras, imagens, tropos, mas
principalmente pelo processo de metáforas, analogias e alegorias.
Exemplifico:
Népia, em vez de nada; labrosca, em
lugar de labrego; pernil (na frase esticar o pernil), isto é, morrer; fuça, em lugar de cara; cachola ou pinha, isto é, cabeça, lamparina
e solha, em vez de estalo na cara; pôr-se no piro ou pirar-se, pisgar-se, pôr-se ao fresco, em vez de fugir,
etc., etc., etc.
Como a principal razão de ser do calão é o seu mistério
significativo, está bem de ver que, uma vez aclarado esse mistério, os interessados
nos segredos da gíria tratam de criar nova expressão secreta
Eu suponho, por exemplo, que isto de roubar o próximo irá até ao fim dos séculos.
Portanto, será impossível tirar das bocas, das penas e dos
dicionários a palavra roubar. E, como roubar
é termo de uso geral, entendido de todos, os larápios e a gente afim trataram
de criar palavras sinónimas dessa geral e então apareceram e aparecem muitas
como bifar, gamar, pinar, etc.
Há tropos no calão que são um processo perfeito de
relacionação figurativa. Por exemplo, guindar
uma caneta, um relógio, uma carteira ou o que for é uma ação reprovável, mas
este verbo guindar, ao lembrar-se a
gente do guindaste, e da operação
que com ele se faz, dá-nos vontade de elogiar a estupenda imaginação do seu criador
anónimo.
Está provado pelas investigações em todas as línguas que o
calão aumenta constantemente a sua sinonímia e que quanto mais “horrível” é a sua
expressão, maior é o número de termos de gíria.
Considerado o calão como “sordida verba”, como palavreado
sórdido, sujo ou torpe, está claro que ele é tão condenável como as coisas “obscenas”
ou desonestas que nomeia.
A palavra gajo,
das mais prestigiadas atualmente, é calão
retinto. Veio-nos do caló, dialeto do
cigano espanhol e, a princípio, só proferida por bocas “plebeias”, anda agora
na falação de toda a gente. Ele é gajo;
ela é gaja; eles são gajos; falei com o gajo.
Em vez de Fulano, de Cicrano e de Beltrano, gajo. Em lugar de se dizer ela, diz-se gaja (ou garina, chavala, cruzeta, garota, miúda, etc.).
Será lamentável? Talvez, mas…
Não é menos lamentável quando alguém da “alta sociedade” se abotoa com boa soma de “contos de réis”
e se diz esse termo limpo de “desvio”
que se lhe tira a imundice à roubalheira. Desviar
por roubar é tipo de calão
hipócrita, e ridículo, de certo modo, pois, além de corromper a expressão, é
tão condenável como o reles.
Há, porém, certo calão que eu tenho o atrevimento de
desculpar ou até elogiar, no ponto de vista idiomático.
É todo aquele que, uma vez desvanecida a ideia triste,
lamentável ou condenável da qual nasceu, passa a vivificar a expressão corrente
ou a expressão artística pela sua formação ou pelo seu admirável processo figurativo,
contribuindo, quando gracioso, para o enriquecimento da língua.
A palavra sarilho,
por exemplo. Esta palavra (sarilho), figurada como calão, é uma legítima
figuração, por se relacionar com dificuldade.
Mas o calão, por vezes também é cruel. O cinismo e a ironia
são amiúde características das suas expressões. Ironizam-se até coisas
respeitáveis. Em vez de se dizer - fulano morreu, já ouvi - arrefeceu-lhe o céu da boca e, até, esticou o pernil.
Note-se, porém, que existem expressões com especto de calão
que, afinal, vendo bem, se relacionam com outras que todos nós usamos.
Por exemplo, quem não diz de algo incerto - esperar por sapatos de defunto?
E porquê? Por isto em resumo: era praxe, em algumas antigas
sociedades religiosas, dar-se o calçado dos mortos aos mais necessitados.
Como estar a dar a
bota, no sentido de estar prestes a
morrer.
Se a gente diz que rouba
tempo, como diz que nos roubaram a
carteira, etc., não vai dizer nestes casos, gamar, bifar ou pinar, porque tais palavras serão engraçadas,
mas apenas para as consciências que todas se gozam no relato das furtadelas
realizadas.
Porém, mandar
ventarolas é de tão legítimo emprego como a expressão afrancesada marcar, no sentido de fazer figura.
Se o povo já diz - marcação
(por importância, luxo ou distinção), com semântica bárbara, menos mal será que
os “cultos” digam, portuguesmente, embora em gíria, que isto ou aquilo manda ventarolas…
Estampar-se, no sentido de cair, quem será capaz de me jurar que tal modo de dizer
não virá a ser um dia termo da linguagem elevada?
Em todas as literaturas há exemplos de escritores que fazem
ou fizeram estendal de termos “sujos”.
Por exemplo, em França (para não falar de Portugal)
Montaigne, Victor Hugo, Balzac, Zola, etc. enxameavam nas páginas de suas obras
o calão (e por vezes do mais vernáculo!).
A imitação dessas exibições do “mal” por meio de termos
violentamente “hediondos” é, a meu ver, condenável.
Mas preconizar o “puritanismo” condenador de todo e qualquer
termo de gíria é insensato, porque
se a gíria vier dar vida às imagens, riqueza à propriedade expressiva…
… ninguém tem o direito de impedir que ela seja recebida
hospitaleiramente na linguagem geral ou na literária.
Carlos Fiúza
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