Todos
os anos se matava o “reco”, pois o porco, como alguém disse, é a máquina ecológica perfeita: transforma
os vegetais em carne; alimenta-se dos restos dos alimentos; produz estrume para
os campos; e depois de morto, serve de talho para o ano inteiro.
A
matança decorria entre novembro e fevereiro, habitualmente nos domingos, e era um
dia marcante para a família e os vizinhos chamados a ajudar. O animal era
preparado no dia anterior: de manhã, dava-se-lhe uma vianda de água e farelos e
jejuava durante a tarde e noite, para “limpar”, amaciar e descongestionar o
aparelho digestivo.
O
cerimonial, começava bem cedo com o mata-bicho, figos e bagaço e também pão e
azeitonas e algum enchido do defunto do ano anterior. O bicho saía do cortelho
para o quinteiro ou até mesmo para a rua, onde passeava calmamente. A passeata
era fundamental para apaziguar a vítima.
O
“matador”, de faca em riste, de corda na mão com um laço na ponta, prendia-o
pelo focinho. Aproximado do banco do martírio com jeito, força e paciência,
aguardavam-no quatro, cinco, seis homens. Dois pegavam-lhe nas orelhas, outros
dois nas patas traseiras, um outro no rabo e assim o estendiam no banco do
suplício. O “matador” introduz-lhe lentamente a lâmina com a sabedoria que só
ele possuía. O sangue jorrava vivo e vermelho para o alguidar da dona de casa
que violentamente agitava o fluido encarnado até fazer uma espuma abundante.
Quanto mais sangue, melhor: superior carne, mais mouras e mais sangue cozido
que se distribuía, num intervalo, pelos presentes, com azeite e alho e uma boa
porção de vinho.
À
dor lancinante e muito ruidosa do porco seguia-se um longo silêncio, interrompido
pelo crepitar da palha para tostar a pele e é fundamental à extração da
epiderme com pedras bem lisas e à raspagem dos pelos com ajuda de água e de facas
bem afiadas. Despojado das unhas, escaldadas as orelhas, retirados os restos das
fezes com um rolo de palha e bem lavado era preparado para a primeira operação
que fornecia a primeira carne para a mesa da matança, os rojões do soventre, a
barriga do porco.
As
tripas são cuidadosamente apartadas para uma bacia ou alguidar. Ainda quentes
retiram-se-lhe alguma gordura, para
serem fervidas numa panela. Mais tarde, serão lavadas na ribeira. Por último,
cuidadosamente é também retirado o “de dentro”: coração, rins, fígado, pulmões,
o estômago, a bexiga que cumprirão uma função especial no fumeiro ou na grelha
da assada. Limpo de tudo vai ser dependurado na trave da loja ou da adega.
Um,
dois, três dias depois, desfaz-se o porco. Volta o “matador” para a “desmancha”
meticulosa. Retirada cada peça é cortada, preparada e colocada na salgadeira,
na avinha d`alhos ou guardada para o fumeiro. Nada é estragado: ao resto do
sangue, junta-se-lhe alho e vinho, que irá ajudar a fazer as moiras.
Nesse
dia há o hábito de "dar o prato". Consiste em levar aos lares mais
chegados, um prato com carne... para que todos provem da matança. Com o dar
nada se perde. Eles vão retribuir, propiciando carne fresca naquele lar durante
semanas.
Após
os “enchimentos”, as cozinhas modificam a sua fisionomia, mostrando a fartura
dos seus enchidos que secam e fumam durante semanas e hão de durar, aí
dependuradas ou em azeite, o ano inteiro: alheiras, chouriços doces, chouriços
de sangue, chouriças de carne e de boche e os salpicões deliciosos e outros
mais especiais como o bulho e a bexiga.
Será
também o alto da lareira o destino final dos presuntos e das pás que aí ficarão
dependurados e sujeitos aos apetites dos da casa, até não passarem de um
simples osso despojado de carne e couro e há de repousar para temperar o caldo
de cascas e adubar uma boa feijoada.
Em Janeiro, um porco ao sol outro ao fumeiro,
ao sol, e também para dormir no
cortelho para o cevar e preparar para a matança que se segue.
Retirado do livro - "Selores... e uma casa"
4 comentários:
O “mata-bicho”
O comer é coisa tão importante que devemos concordar com aquele filósofo que se saiu com esta afirmação-trocadilho, embora em sentido especial – Mann ist war er ist (o homem é aquilo que (ele) come).
Desde que o mundo é mundo, o homem come. Parece isto uma afirmação ociosa, mas observar o que toda a gente vê é necessário para pensar naquilo em que todos pensam.
Aliás, na História do homem e do mundo, há coisas e factos que todos sabemos, mas nos quais não pensamos.
O homem começou por ter o alimento à sua mercê. Era só achegar-se às árvores, colher dos frutos, e pronto: alimentado estava. Assim nos conta o Antigo Testamento...
Mas, em pós daquilo que todos sabemos que aconteceu entre Adão e Eva, Deus castigou ao homem, e lhe disse: “a terra será maldita na tua obra: tu tirarás dela o teu sustento com muitas fadigas todos os dias da tua vida”.
Quer dizer, o homem, desde então, fatalmente para seu castigo, passou a repartir a sua vida nestas duas necessidades imperiosas: “comer e… trabalhar para comer”.
O povo português criou um provérbio humorístico tradutor dessa realidade, o qual é desta feição: “quem não trabuca não manduca”.
Claro que há exceções; mas o que nos interessa agora é a regra, e não os “verbos de encher”.
Deste jeito, a repartição das duas atividades sobreditas, o trabalho e a alimentação, precisa de se subordinar ao fator tempo: ao homem faz-se mister trabalhar a certas horas, descansar em tempo determinado. Ora esses momentos determinados em que ele se alimenta e bem assim o de que se nutre - eis o que se chama as refeições.
Trabalhando, vivendo, o homem gasta-se. Comendo, recupera a anergia física ou natural. Passa-se a vida normal com o descanso noturno depois das fadigas diurnas. O corpo deitado alimentado está, e até diz o nosso povo que “o corpo deitado aguenta muita fome”. Mas, tanto que o homem desperta e vê diante de si mais um dia e as várias canseiras dele, logo pensa na primeira refeição. E tem de pensar, porque mesmo que não pense, o estômago o avisa da necessidade do alimento, começando a fazer aquilo que certa vez ouvi expressar, com muita graça: o estômago começa a “apitar”, avisando que precisa de alimento.
Ora como se chama a primeira refeição do dia em terras de Portugal? Depende das pessoas e dos lugares.
Há, por exemplo, quem lhe chame o “mata-bicho”. Na verdade, pessoas copófilas, os chamados copofonistas, preferem a aguardente, e com espírito pitoresco chamam-lhe “mata-bicho”.
Alguns há, infelizmente, que só dispõem de uma côdea, a que por vezes, chamam “bucha”.
Almoço pode aplicar-se à primeira refeição? Pode. Dir-me-ão, porém, que o geral dos Portugueses chamam almoço à refeição mais forte que se segue ao primeiro “engano” do estômago. Assim é. Todavia, muito povo chama simplesmente almoço ao primeiro, e almoço de garfo ao segundo, quando intenta diferenciá-los.
Derradeiramente, notemos que o nome da refeição pode ocultar-se, referindo-se apenas aquilo que principalmente se toma. Dizemos beber o café, tomar o chá, etc. E no Minho ouvi muita vez - Vou comer o “caurdinho”, isto é, o caldinho, ou a sopa.
Mais um belíssimo texto do José Alegre Mesquita.
Parabéns… e que o seu livro não demore!
Carlos Fiúza
Parabéns, professor! Com muita imaginação!
XP
Noutra aldeia de outro concelho, também era assim! Acrescento, apenas, uma ceia e um serão inesquecíveis!...Com jogo de cartas,para os adultos ,ao quentinho da braseira, em estrado de madeira debaixo da mesa ,na outra divisão grande da casa,e esconde esconde para a garotada...
Belo texto, bela descrição! E também se faz a 'tabafeia'!
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