11 fevereiro 2015

Alegria, Entrudo, que amanhã será cinza



É entrar, meus senhores, que é tempo da brincadeira e da reinação!
Que tal “botar” um casamento? Não estará na hora de deitar “as pulhas”? Mas ainda há quem vá aos bugalhos  para as “bugalhadas”? E panelas de barro para as cacadas? Sobram ainda, por aí, rendas para esconder a cara?
É entrar porque espreita o Entrudo e é preciso romper com a monotonia do inverno e a seriedade da vida. É aproveitar porque ainda há muito tempo cinzento e frio e daqui a nada ninguém tem vontade de conversar. É lembrar o estio e deixar-nos envolver pelo brilho dourado do sol. É recordar os miosótis azuis, as papoilas vermelhas nos campos de trigo amarelo e o verde das folhas dos arbustos porque é altura de pintar as cores no pensamento.
É tempo de dar mais fôlego à brincadeira, à imaginação e à transgressão das normas, seja com fatos e chocalhos abanado com as raparigas, seja com a realização de casamentos ridículos: É tempo de distribuir riso e justiça (quantas vezes a mesma coisa) e se não nem todos se podem julgar, julgue-se o Pai da Fartura.
Em muitas aldeias do concelho, por alturas do Entrudo, era uso “botar os casamentos” à noite. Os rapazes mais afoitos subiam aos montes, ou lugares mais elevados, ou mesmo as árvores altas e afastadas e munidos de uma folha, que é como quem diz um funil de medir o vinho, iniciavam um diálogo sempre jocoso e disparatado, quantas vezes apimentado, quantas vezes inconveniente que o silêncio da noite fazia ecoar nas quebradas dos caminhos e corar de vergonha as corujas, e outras que tais, dos campanários das igrejas. E lá se prometia casar a moça mais jeitosa com o viúvo velho, as belas e as bestas, as pobres e os remediados, pois se não houvesse exagero e caricatura, não havia graça.
Dizem-nos que era assim, em diálogo:
 - Ó camarada! – começava  um
- Olá camarada! – respondia o outro.
- Vamos fazer um casamento?
- Olha que vai de carreira.
- Casa o senhor Isaías com a senhora Teresa Carreira.
- Ó companheiro, vamos fazer outro casamento?
- Arranja lá o rapaz, que eu arranjo a rapariga.
- Pode ser o João Moças. E a rapariga?
- A Maria do arrasta o tamanco
- E é bem arranjadinho! Hi! Hi! Hi!
- Ele já não tem dentes!
- Mas acha-os num caminho.
- E que lhe havemos de dar de dote?
- Uma panela e um pote.
Ou então, na forma de quadra:
Aqui vai um casamento
Este vai bem arranjadinho
Vai casar a velha da Maria Antónia
Com o menino João Ratinho
Em Foz-Tua, ainda alguém se lembra de deitar “as pulhas”. Alguns rapazes iam para a estrada e procuravam o sítio mais alto e com um funil na boca diziam mal das pessoas, criticavam namoros escondidos… Do outro lado do rio Douro estavam outros rapazes que lhes respondiam.
Nas vésperas do Entrudo, pelo mesmo processo, também se usava partir o burro pelas raparigas da aldeia. Cada peça do arreio e do corpo do burro era repartido pelo mesmo processo, dizendo o que cabia a cada rapariga e para que servia. No Mogo de Malta, alguém se lembrou desta: À menina Maria / Que é a forneira / Leva as ferraduras / Para raspar a masseira.
 As bugalhadas do Entrudo eram comuns em outros locais, em que as pessoas ainda aceitavam brincadeiras. Juntava-se um grupo de jovens com sacos de bugalhos anteriormente apanhados. Pela calada da noite eram atirados na casa das pessoas escolhidas a propósito. Logo que lançados, fugiam para o breu da escuridão. O barulho provocado assustava e indispunha os presentes. Os bugalhos podiam ser substituídos por cacos de panelas velhas de barro, só que a esta "brincadeira" chamava-se "cacadas".
Por alturas do Entrudo, era costume também vestirem-se roupas velhas, colocarem-se rendas na face, e, sob quase anonimato, percorrer-se a aldeia, assustar-se os transeuntes e atirar-se farinha.

O cozido do palaio, acompanhado das cascas e das batatas, e regado pelo vinhito, ajudava a digerir as brincadeiras, menos engraçadas porque “sábado filhoeiro, domingo gordo e pelo Entrudo come tudo.”

Sem comentários: