Quantas vezes viajamos à roda do nosso quarto ou
caminhamos num trajeto sempre repetido, sem qualquer outro proveito que não seja a imaginada
forma física, porque andar é um imperativo que se nos exige, face à vida
sedentária, ao aumento de peso, aos valores altos da análise do colesterol e
dos triglicerídeos, palavras modernas tão medonhas, como antigamente eram o
mau-olhado e as pragas. Abrenúncio! Andar e mourejar era o que não faltava há
uns anos a esta parte nos longos e trabalhosos dias do amanho das terras e
todas as energias eram poupadas para o efeito e caminhar por caminhar… era um
prazer só para quem podia.
Os que também podem, viajam para as praias, ou se o
orçamento permite, para umas férias, de preferência um local quente e paradisiaco, para desfrutar de águas tépidas, tempo esplêndido, destinos
inesquecíveis, em suma, verdadeiros paraísos naturais que resultam, em aventura
e prazer, algumas picadas de mosquitos e uns distúrbios intestinais. Pois, bom
proveito! Fico por aqui a concordar com Garrett: “tenho visto alguma coisa no
mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz,
as que mais me interessam sempre foram as viagens da minha terra”.
Não se olhe ao ditado que “mulher e vinho fazem errar
o caminho” porque também o outro é bem mais verdadeiro, “com pão e vinho, anda
caminho”, porque essas outras tiradas que terminam com o estender do farnel
recheado da trindade gastronómica tradicional, o presunto, o salpicão e o
queijo, para partilhar à sombra e em ameno convívio e, valha-nos São Lourenço,
repõem ainda mais calorias que as consumidas, são das minhas preferidas.
E então não se hão de fazer caminhadas para os olhos?
Porque há tanto que ver, descobrir e aprender em trajetos à volta deste território
tão imensamente rico em património oral, arqueológico, monumental e
paisagístico. Pegamos o bordão de romeiro e toca a peregrinar pelos caminhos da
minha terra em busca de histórias de espantar, e de outras para contar. Caminhemos então e partamos à descoberta para conhecer, aprender e
fantasiar. Andemos que se faz tarde nesta viagem á procura da casa da moura,
local mágico, onde “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Porfiamos sem
temores porque há tesouros encantados por descobrir, belas princesas e perfeitos
mancebos para desposar. Reflitamos com empenho porque são muitos os enigmas
para decifrar. Mas, tomem atenção porque este é também um caminho viciante e quem
nele segue com vontade e compromisso raramente volta atrás… Entremos, pois, sem medos
porque só assim conheceremos este reino maravilhoso…
Antes de mais, suba o mais alto que puder para saber o
que o espera e com o que se pode contar. Porque “quem namora ninhos cá de
baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e
atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.” E neste deixar
que a vista se alargue de “ânsia e de assombro”, porque não escalar os
miradouros deste reino de Ansiães: o Alto do Castelo, a Osseira do Seixo, O
Síbio do Pinhal do Douro, o ValePedro da Beira Grande, o Pinocro na Fontelonga,
a Senhora da Graça da Samorinha, a Senhora da Saúde dos Mogos, do Senhor da Boa
Morte do Castanheiro, a Capela do Bom Jesus de Tralhariz, o Monte das Caldas do
Pombal…, e depois concluir que “não é um panorama que os olhos contemplam: é um
excesso de natureza”. Se houver jeito, deixe-se o verso brotar que há de surgir
poesia da boa.
Em íngremes encostas, varandins que nenhum palácio
desfruta, janelas de pedra onde cabe o mundo todo e só mais não alcança porque
a neblina difusa não deixa vislumbrar o resto, de onde se descortinam vistas de
cortar a respiração, claraboias onde se podem espreitar as estrelas e,
amiudadas vezes a sublime Lua que persegue o Sol, eterna enamorada em busca do
seu amor e esplendor. Nestes miradouros, quais portas do paraíso, deles se
avistam e crescem as cepas “como os manjericos às janelas”, estoiram em branco
as amendoeiras em flor, para que nenhuma princesa que ali venha habitar sinta
saudades da neve, quando a não trouxe a invernia; verdejam as oliveiras que, se
vestem de luto de pequenas bolas natalícias, e, atendendo à quadra, tal como o
Filho da Virgem, para dar a luz ao mundo mil tormentos padecerão. Os olhos
descansam nos carrascos e nos altivos sobreirais e os sentidos procuram as
cores das estevas, das urzes, das giestas e das cornalheiras; os odores da
arçã, do fiolho e das lavandas. No sol da canícula, desponta o desejo de
frescura que os salgueiros e amieiros, surgidos junto das linhas de água,
atenuam, mas a sede só pode ser saciada na rara fonte, no rio de ouro ou no seu
afluente que é Tua, ainda virgens de barragens e de outras porcarias que os
conspurcam, ou no fruto que procede do antigo jardim do Éden; “deixai-me agora falar/
do fruto que me fascina”, é concebido aqui na árvore que é também da sabedoria
que mostra de uma só vez todo o processo da criação: flor e fruto, poesia e
volúpia, “do fruto que me fascina/ pelo sabor, pela cor, pelo aroma das
sílabas,/ ó música de meus sentidos,/ pura delícia da língua,” tangerina, laranja,
tangerina…”
De cada um destes altares esguios, majestosos e
suspensos nas nuvens, se se pode desfrutar dessa paisagem natural
deslumbrante, imponente e a perder de vista, mas viva e trepidante porque nela
habitam uma boa quantidade de animais salvos na arca de Noé. Nas cercanias
saltita o coelho assustado, voa a perdiz espantada até se tornar numa mancha
confundida com o arbusto que a protege. Se não fosse a raposa, a lontra e o
lobo de duas pernas porque o outro já se eliminou, cada uma à sua maneira vêm
perturbar a quietude reinante, e seria o paraíso na terra. As vertentes
escarpadas oferecem a tranquilidade necessária para albergar as inúmeras aves
garbosas e raras que aqui se reproduzem, como o grifo, o abutre do Egipto, a
águia-real, a águia-de-Bonelli, a águia-cobreira e a cegonha-preta, nos ares de
uma azul doce e cristalino planam os irrequietos abelharucos, na largueza do
olhar, salpicam a cor da paisagem os extraordinários papa-figos; e nos muros e
armazéns abandonados aparece ao paciente observador o raríssimo chasco-negro; nos
rios e riachos nadam em relativo sossego o barbo, a boga, o escalo, o bordalo,
o ruivaco, a truta...
Em verdade vos digo que a Nossa Senhora da
Assunção que é venerada no cabeço de Vilas Boas, do concelho
de Vila Flor, está neste local contra a sua vontade, pois onde queria
estar era num destes outros cabeços. A glorificada e louvada senhora tudo fez
para ser venerada noutro monte e noutra ermida e assim apreciar para sempre os
mares de pedras e as paisagens de sonho, como só no reino maravilhoso de Ansiães
podem ser contempladas. Contaremos mais tarde.
(Viagem à Casa da Moura)
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