15 setembro 2012

Festa da Santa Eufémia (revisto)


(foto de José Manuel Pereira)
 
A festa da Santa Eufémia, em Lavandeira, é a romaria mais conhecida e a mais concorrida do concelho de Carrazeda de Ansiães. Também conhecida por “Festa da Marrã”, já que é tradicional cozinhar-se carne de porco fresca, assada nas brasas ou frita na própria gordura, a que chamam marrã. Assim, todos os anos, nos dias 15 e 16 de Setembro, tem lugar esta festividade em honra da Santa. Aos naturais juntam-se largas milhares de forasteiros atraídos pelo fervor religioso e pelas atracões profanas.
           
A Santa Eufémia, mártir dos primeiros tempos da igreja cristã, agregou à sua volta um grande  e popular fervor religioso . A história do seu martírio, no antigo circo romano, conseguindo suster miraculosamente os leões esfomeados, conta a tradição, colocados em destaque no altar e em seu redor com uma mansidão de cordeiros, provocou no povo uma admiração e um fervor que ultrapassou as fronteiras concelhias. A procissão espelha esse sentimento religioso, na sumptuosidade e grandiosidade da armação dos andores, nas bandas de música contratadas, nos figurantes e multidões que a acompanham.
A sua irmandade estende-se por vários concelhos e agrega centenas de irmãos que para ela contribuem monetariamente. Todos os anos, a Comissão Fabriqueira percorre várias aldeias para recolha de fundos. Estas irmandades são ainda memórias que se perdem no tempo e foram instituições fortíssimas em rendimentos que construíram templos e desenvolveram múltiplas ações.
À “milagrosa Santa Eufémia” (como o povo lhe chama) se reza em momentos de grande aflição – nas doenças próprias ou de familiares, na “parição” das crias, na defesa das colheitas das intempéries… e se fazem promessas pagas em pecúlio, em azeite, em cereal, em cera e esforço físico - de joelhos, de rastos...

Para além da componente religiosa acresce a parte pagã, que vai buscar raízes ao porco (marrã de marrão), símbolo de fertilidade e objeto de diversos cultos na pré-história de que resultaram diversos exemplares em pedra executados e semeados (quais menires do Obelix) um pouco pela região.
A carne de porco era o principal “peguilho” das nossas gentes do campo. Em todas as casas se matava um ou outro "requinho", cujo tamanho era diretamente proporcional às posses de cada um. Depois do jejum da carne de vários meses, porquanto desde a matança do Inverno, ela raramente subia às mesas. As salgadeiras já se tinham esgotado há muito e só a Páscoa trazia um pouco de cabrito ou as ceifas e malhadas um pedaço de ovelha e cabra, intervalada com uma ou outra galinha caseira. Por meados de Setembro chegava a grande festa da carne – a marrã da Lavandeira.
A força da “gula” atraía todas as camadas sociais. Os mais endinheirados distribuíam-se por diversas casas particulares, que se abriam ao negócio, em lautas "comezainas" com marcações prévias. Aí saboreavam os autênticos prazeres da carne. Os mais parcos de recursos e de volume da carteira, mais numerosos, degustavam da delícia no arraial, misturando a carne com o pó e o vinho.
As tasquinhas espalhavam-se pelo exíguo espaço do adro. O manjar incluía para além da marrã os rojões, os ossos da suã... dos bácoros caseiros tratados com as viandas substantivas polvilhadas de farelo, que os talhantes, muitos só ocasionais, procuravam por todo o concelho e abatiam às dúzias numa significativa e ruidosa mortandade

Os folguedos estendiam-se ainda pelo convívio, pelo negócio das barracas de quinquilharias, dos doces e pirolitos, o arraial, o fogo-de-artifício. Principalmente para os habitantes, como eu, da “Poça” (Lavandeira, Selores, Seixo de Ansiães e Beira Grande), a festividade era o grande acontecimento anual pelo seu cosmopolitismo, na diversidade de gentes que ocorriam e todo um conjunto de práticas e vivências – coisas nunca vistas, sabores nunca provados, sensações nunca experimentadas.
Na minha infância, a festa da Lavandeira significava um mundo de aventuras e consumação de desejos. Vistos e revistos todos os conteúdos das barracas espalhadas pela rua íngreme de acesso ao adro, que mostravam verdadeiras preciosidades irresistíveis e lindíssimas aos nossos olhos cheios de ingenuidade, desde Nossas Senhoras florescentes, a brinquedos de madeira e lata passando por todo o tipo de quinquilharias. Visitadas e revisitadas as barracas, e depois de namorar muitos artigos e de executar contas complicadíssimas, lá se investiam os tostões amealhados com tanto esforço no artigo que iria preencher muitos sonhos nos dias seguintes.
Chegava a adolescência e não esmoreciam os sentimentos de ansiedade pela festa da Santa Eufémia. Este era o local ideal para a descoberta de novas sensações compartilhadas com alguém do outro sexo no baile do arraial e na penumbra do adro e das ruas, até muito tarde, ao som das mais afamadas bandas musicais.

A festividade teve o seu ponto mais alto na década de sessenta, setenta e até oitenta. As copiosas ofertas dos emigrantes possibilitaram um crescimento sustentado e efetivo, visível nos melhoramentos executados no adro da igreja, na pompa da procissão, no brilhantismo dos arraiais e na espetacularidade do “foguetório”. Era a maior festa do concelho e até um caso regional, pois teve honras de programa televisivo no único canal que visionávamos.
A festividade tem perdido importância ao longo dos últimos anos, fruto de vários fatores. A partir dos anos oitenta, coincide também com o aumento do nível de vida das populações, a atração pela marrã, decresce aos poucos. A carne torna-se um alimento muito mais vulgarizado. As receitas dos emigrantes decrescem. As festividades aumentam de importância e de deslumbramento no concelho, crescendo também a concorrência e até superando-a em nomes sonantes nos arraiais, A festa da Lavandeira começa a ficar relativizada face a outras festejos e quase perderá a sua posição dominante, quando comparada com a Feira da Maçã em Carrazeda, completamente subsidiada pelo município. O fervor religioso diminui face a fatores diversos.

A festa da marrã continua porém, a ser um património concelhio que urge preservar e revitalizar. Ela é um bem que ultrapassou as fronteiras da aldeia e pertence um pouco a todo o concelho. Faltam reunir sinergias para potenciar o seu prato característico, como atrativo turístico - a marrã - e ideias para projetar o seu rico espólio tradicional de modo a ligá-lo ao património arqueológico do castelo. O desenvolvimento concelhio não se deve limitar e compartimentar à vila, mas vistos com largueza de olhar e numa perspetiva global.

Setembro de 2006

5 comentários:

Alexandrina Areias disse...

Excelente postagem!!! Parabéns! Esta postagem fez-me recordar as minhas idas a esta festa quando pequena (à qual nunca podia faltar... e para ir, tinha que descascar um balde de amêndoas...:) de recompensa tínhamos sempre direito a uma pequena recordação... desde uma simples bandolete... a um passarinho de plástico no qual se deitava água e que soprando assobiava/cantava...:)

Boas recordações mesmo!!!
AA

Unknown disse...

Nisto de recordações ,dou comigo a pensar nas que teriam os homens das cavernas(homens como nós) quando se punham a pensar na sua juventude.
Com certeza que uma cauda de raposa, oferecida pelos pais, seria motivo de grande contentamento e saudade dos tempos idos.
Nas sucessivas épocas seguintes, quanta felicidade sentiriam o s homens ao lembrarem-se de factos da sua idílica mocidade.
Ao pensar no passado, temos ,quantas vezes ,porém, a sensação do paraíso perdido.
Mas os tempos mágicos não são apenas os passados mas, muitas vezes, os futuros. Quanto eu quis, ao pensar nas deslocações do Seixo a Carrazeda, que houvesse um pequeno elétrico que transportasse as pessoas quando queriam ir às feiras!
Julgo que este sonho para o futuro nos ajuda a suplantar a tristeza do anos que já não voltam.
Até porque é ainda realizável e nos dá a esperança de poder ser posto em prática.
JLM

josé alegre mesquita disse...

"...a memória é muitas vezes a qualidade da tolice; pertence em geral aos espíritos grosseiros, os quais torna mais pensantes pela bagagem com a qual os sobrecarrega. E, no entanto, sem a memória, o que seríamos? Esqueceríamos as nossas amizades, os nossos amores, os nossos prazeres, os nossos negócios; o génio não poderia reunir as suas ideias; o coração mais afectuoso perderia a sua ternura, caso não se recordasse mais dela; a nossa existência reduzir-se-ia aos momentos sucessivos de um presente que transcorre sem cessar; não haveria mais passado. Ó que miséria a nossa! A nossa vida é tão vã que não passa de um reflexo da nossa memória."

Chateaubriand

Unknown disse...

As coisas existem independentemente do nosso querer. Elas são e estão por si, e nós ,em primeiro lugar, devemos tratar de saber como são e estão. Essa era a tarefa, antigamente, do pensador intelectual, filósofo quase sempre , que tinha apenas como instrumento de trabalho a sua própria inteligência, com a qual pretendia desvendar todos os segredos do mundo.
Esse pensador, muitas vezes com uma inteligência fora do comum(e com uma imaginação ainda maior) arquitetava teorias e esquemas rebuscados e conseguia, quantas vezes, montar todo um sistema explicativo do mundo(ou de partes dele) que, pelo menos , do ponto de vista lógico, tinha uma coerência dificilmente atacável.
Os anos foram passando e cada vez mais os homens procuraram outra via para chegar ao conhecimento da realidade: a via científica. E, já sem a preocupação apenas da coerência lógica, com a preocupação da descoberta da realidade, com a ajuda de instrumentos cada vez mais sofisticados, quis esmiuçar e estudar de molde a conseguir ver o que e como as coisas são. Abandonou o encantamento dos raciocínios brilhantes e quis pasmar-se com o encontro com a verdade científica. Abandonou os juízos de valor e quis apenas saber como isto tudo funciona, pressupondo, é certo, que haveria leis inexoráveis que tudo comandam e que constituem as leis da natureza.
É a postura que me interessa ter aqui: a memória existe e funciona segundo determinadas regras. É o que quero saber: como é e como funciona. Posso eu deixar de ter a minha memória, não recorrendo a processos drásticos? Parece que não. Pode até acontecer que eu não goste de factos passados e não consiga que eles deixem a minha vida em paz por exageros da memória.
A nossa memória está em nós tal como ela é em cada um de nós(mais pormenorizada ou mais abstracta, mais alegre ou mais triste, até nula ou prodigiosa, ainda serena ou agitada).
Ela deve desempenhar o seu papel mas convém que o faça com o equilíbrio necessário: deve fornecer-nos elementos à medida que forem precisos. Ela não deve tomar o freio nos dentes e impedir-nos de realizarmos a missão mais sagrada da nossa existência: a nossa afirmação no nosso dia a dia. Os outros tiveram a sua vida, nós temos a nossa, para ser vivida, no presente, claro.
E se obstáculos se levantam, designadamente pela nossa memória, à nossa vivência plena, eles devem ser removidos, se possível, recorrendo, pois não, às descobertas da ciência.
A memória está, é, e quer-se que funcione, desembaraçando-se bem do seu papel.
Só é pena que ainda não haja cura para a doença de Alzheimer.
JLM

Unknown disse...

E um dia a memória extinguir-se-á em cada um de nós. E então entraremos, cada um à sua vez, no puro estado de nirvana do nada.A não ser que "lá no assento etéreo"(se existir), onde subirmos, "memória desta vida" se consinta.
JLM