Durante vários séculos e muitas gerações, o território de
Ansiães foi governado a partir do Castelo de Ansiães, onde se situava a vila e
sede do município.
O castelo situa-se num ponto alto e central. Dele se
avista longe para todos os lados.
Os seus residentes sempre tiveram um grande prazer em
viver tão pertinho de Deus. As muralhas alcantiladas no alto do monte davam a
segurança e o aconchego tão importantes
no rodar dos anos.
As habitações, construídas de pedra solta, térreas e, em
geral, de uma só divisão, cobertas de colmo ou de telha vã, proporcionavam o
conforto a que as pessoas aspiravam. Tudo se fazia em conjunto:
cozinhar, dormir, conversar ,fazer amor, tratar da
limpeza pessoal (ler não, que eram todos analfabetos, tomar banho não, que não
havia água).
Um pequeno quintal estava mesmo ali ao lado para cultivar
umas couves.
Um burrico, que residia junto ou ao lado, ajudava a
aquecer a casa com o seu bafo e as suas defecações. Estas e as das pessoas eram
juntas no mesmo monte para estrumar os terrenos. Havia uma grande irmandade
entre os residentes e os animais domésticos, que resultava de viverem todos em
condições semelhantes, condições essas adequadas às necessidades .
Há que salientar aqui alguns pormenores: durante o
inverno, não eram precisas grandes limpezas pessoais: os parasitas do corpo e
das camas em grande parte desapareciam por causa do frio, as roupas eram
escassas e, portanto, usavam-se as mesmas durante toda a época invernal, e não
se podia correr o risco de apanhar resfriados ,que podiam ser fatais. Mas, mal
chegavam os dias mais soalheiros, era um regalo ver tanta azáfama de limpeza:
catavam-se os piolhos, matavam-se os percevejos, cortavam-se os
cabelos (juntava-se depois tudo e lançava-se à fogueira, prevenindo-se assim
contaminações). Diga-se, em abono da verdade, que a água não abundava e, por
isso, a limpeza tinha de ser feita a seco. Tudo se resolvia bem: cortavam-.se quanto possível todos os
pelos(da cabeça, do peito, do púbis, do ânus) e toda a bicharada e imundícies
agarradas saíam.
Comia-se do mesmo prato e. por vezes, com os mesmos
garfos e colheres.
Bebia-se do mesmo cântaro e com o mesmo púcaro.
Quando doentes, resolvia-se tudo com sangrias.
A religião era praticada através de ladainhas, esconjuros
e penitências.
Havia igrejas ,tribunal, edifício municipal, pelourinho,
tudo. - E chega.
A vida só podia ser feliz e risonha.
Um dia, porém, (chega sempre um dia) alguém achou por bem
mudar a sede do concelho para um lugarejo pequeno e pobre, chamado Carrazeda.
As pessoas ainda resistiram mas a felicidade acabou
mesmo. Não há bem que sempre dure.
Carrazeda passou a vila e a sua gente passou,
orgulhosamente, a gente de vila.
Tenho, para mim, no entanto , que esta mudança constituiu
um grande retrocesso civilizacional.
João Lopes de Matos
16 comentários:
Finalmente, temos de volta o dr. JLM! Seja bem-vindo. Desta feita, traz-nos uma opinião sobre o modus vivendi generalizado das nobres gentes de Ansiães. Apesar de ser um texto simples, é suscetível de várias leituras e eu gostaria de deixar apenas esta, embora possa parecer um pouco provocatória: estamos perante uma alegoria ao lixo, à miséria, à frugalidade, aos piolhos e percevejos, à falta de água, ao burrico dentro de casa...?
Sim, porque JLM termina num lamento por aquela gente ter abandonado tal situação e ter-se mudado para o vale extenso e fértil a que o vulgo chama de "veiga", com muita água e condições excecionais de produção agrícola! Como se sabe, foram a escassez de recursos hídricos e o clima agreste, dos principais fatores que obrigaram ao abandono do castelo, mas JLM considera esse
abandono, um atraso civizacional!... Quer concretizar melhor a sua última afirmação? Cumprimentos.
h. r.
Dr.
Aprecio o seu saudosimo!
Em todos os níveis aceito que não estamos como deveríamos estar.
Mas desde aí até ao seu "retrocesso civilizacional" vai uma grande distância.
Aliás, a sua descrição bem identifica.
Ateu Versão/2012
Voltam aí, piolhos e percevejos.
Ai, vêm, vêm !!!
X9
ai, ai, nossa, doutor,
assim você me mata...
iol
ai, ai nossa, doutor,
assim você me mata...
iol
Não foi um retrocesso civilizacional?
Eu acho que foi mesmo um atentado grave contra a nossa identidade,contra os nossos usos e costumes, seguidos ao longo de séculos.
JLM
À actual distância de meados do século XVIII, é fácil ver como foi um avanço a mudança do alto do castelo para a planura, onde pelo menos havia água para as limpezas pessoais, assim que estas viessem a estar entranhadas no modus vivendi das pessoas.
Sabemos que houve resistência do castelo à sua perda de importância. Na altura, a mudança não se fez, com certeza, ouvindo a população, muito menos através de referendo.
Hoje estamos numa etapa parecida de desenvolvimento a exigir soluções novas.
Diz-se: não se querem feitas a régua e esquadro, querem-se feitas com o máximo de democracia e não abdicando da preservação de uma certa identidade e de um certo típico viver.
Depois de feitas as mudanças e à distância de umas décadas(agora, não será necessário o transcurso de séculos) chegaremos talvez à conclusão de que o avanço era imprescindível.
Também agora, como então, a resistência à mudança joga contra os ventos da história.
O espírito conservador é o mesmo.
Fiquemos hoje por aqui.
Saudosista eu?
JLM
Estás cada vez melhor!
Saudosista o JLM?
Francamente, não acho!
Eu dou-lhe razão no "ATRASO CIVILIZACIONAL"...
Primeiro porque o lugar que recebeu a transferência, por sinal, muito contestada, era um pobre lugar! Aliás basta que, quem tenha idade para isso se recorde do que era Carrazeda na década de 20 do século passado, ou seja em 1920 ou 1930, ou até mesmo 1940!
Atraso que teria outra qualquer amplitude para menos se a transferência se desse para Marzagão, Selores ou mesmo Lavandeira;
Atraso porque, o que é agora FRACO e abandonado lugar histórico, poderia ter sido lugar APROXIMADO, resguardado e hoje importante para a nossa economia local!
Só agora se pensa poder fazer o impossível, mas não adianta, pelo menos enquanto tivermos gente que, como antes, não nos sabe governar, mas apenas e espertamente governar-se a si próprios.
de novo - aae/
Estou inteiramente de acordo com este anónimo de 07 de Março, se bem que me pareça Selores como o sítio a escolher para implantar a sede que viria a ser "concelho"!
Do que gostei mais foi da lavagem a seco. A água da barragem foi mesmo um atraso civilizacional. Era um mundo puro e dos puros. Foi pena ter acabado. Havia mais bichinhos, ao natural. Os sabões azuis e rosa foram um rude golpe de que ainda hoje não nos refizemos.
Va de retro
Os sabões azuis e rosas,e as mãos das nossas mães, nos rios ou nas ribeiras,lavavam muito melhor do que os skips e as máquinas! Hoje lava- -mo-nos muitas vezes e em muita água, e só por isso, julga-mo-nos muito asseados!
Para alguns comentaristas, o mundo devia ser o da sua infância. Nem para trás nem para a frente.
Pare, escute e olhe
Cá para mim este último comentador ainda é muito jovem!
Não sabe que apesar de não haver tanto conforto, e tanto consumismo...
o pouco que havia, foi do melhor que já experimentámos,os que como eu são saudosistas do passado!
como eu gostava de tomar banho no rio douro!
como eu gostava de tomar banho no rio douro!
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