É ou não verdade ser a “contradição” o sal da personalidade de João Lopes
de Matos?
Veja-se o seu texto “A Vila de Ansiães” e nele se encontrará tudo o que
não “lembra nem ao diabo”!
Pela minha parte até achei original a sua argumentação… (como
contraditório, leia-se).
Ma não há dúvida (a aí ele tem inteiramente razão):
a palavra mais poeticamente portuguesa é - a saudade.
E digo “mais poeticamente portuguesa” porque, se
metemos ao caso a rígida filologia, lá se vai o encanto português da saudade, e
vêm os estudiosos frios e objetivos afirmar que, afinal, se encontra sinonímia
vocabular e até sentimental noutras línguas e entre outros povos.
Pois a saudade portuguesa não é a mesmíssima coisa
que o romeno dor, que o galego morriña,
que o catalão anyoranza, que o alemão Sehnsucht
(e Heimweh) ou até que o francês mal du pays, souvenir (du
coeur), le doux regret?
E o desiderium dos Romanos
não é correspondência latina da saudade portuguesa?
Haverá quem responda afirmativamente e proteste
contra a pieguice lusíada de imaginar intraduzível a saudade.
Evidentemente, se nós nos pusermos a investigar com
afinco o problema psicofilológico da saudade, palpita-me que nas próprias
línguas africanas, asiáticas e ameríndias haveremos de encontrar equivalentes,
mais ou menos aproximados, do sentimento saudoso.
Por este modo de ver, não seria difícil ir buscar
ao homem primitivo o sentimento saudosista.
Não deve existir lugar algum da Terra, onde o homem
não tenha manifestado a mágoa pela ausência da coisa amada, o desejo de tornar
a ver ou de ter presente o motivo de seus anseios.
Será comparável o “banzo”,
africano à saudade portuguesa?
Um inglês meu amigo, a quem falei com orgulho no
portuguesismo da saudade, pretendeu deitar um balde de água fria no meu
patriotismo sentimental, lembrando-me que na língua dele, afinal, também se
vive e expressa o mesmo sentimento, que a maior parte dos Portugueses imaginam,
ingenuamente, um exclusivo do seu coração e da sua língua.
E citou-me longing, home-sickness, to be home-sick.
Todavia, esta procura de equivalentes para o termo
doce e expressivo da nossa língua parece-me tarefa inútil.
Inútil e, de
certo modo, incoerente, não só no aspeto sentimental mas, inclusivamente, no
aspeto filológico.
Já se chegou a aventar, por exemplo, que a saudade
nos viera dos Árabes.
E porquê? Por isto em resumo: Em árabe há çaudá que significa melancolia.
Ora, a melancolia, é uma doença nervosa. E, como a
medicina medieval hispânica esteve sob a influência de mestres árabes como
Avicena, Averróis, etc., a saudade portuguesa teria sido… um “achaque pegado”
no tempo dos Mouros.
O pior está em que a filologia não saberá explicar
como de tal palavra árabe se poderia chegar à portuguesa.
Outra dificuldade está ainda, penso eu, em que o
vocábulo arábico não tenha ficado no vocabulário espanhol a traduzir o
sentimento saudoso.
A história da língua convence-nos, na verdade, que
do latim solitate(m)
provém, etimologicamente, saudade. A comprovar lá estão as antigas formas soedade (ou soidade), suidade (ou ssuydade).
No século XIV já aparece saudade, como Carolina Micaelis documentou.
Deve ter-se dado a influência de saudar, saudação,
saúde na transformação de soedade, etc., (formas galécio-portuguesas para
saudade).
Quem ler tudo o que se tem escrito e reescrito
acerca da palavra referida, nota estas opiniões divididas:
- De um lado, houve quem imaginasse a palavra
saudade intraduzível noutras línguas. Garrett, por exemplo, assim pensava (se
bem que reconhecesse que o sentimento representado pelo “mais doce, expressivo
e delicado termo da nossa língua” … “em todos os países o sentem”).
- Do outro lado, encontra-se o parecer dos que,
alegando haver noutras línguas equivalentes ou quase equivalentes do termo
português, negam a este a singularidade do seu significado.
Penso que o poder encontrar-se noutras línguas a
correspondência aproximada do emprego das nossas expressões - sentir saudades por alguém, sofrer saudades da pátria, etc., - não tira
à saudade portuguesa aspeto inconfundível de um complexo psicológico sui
generis, cujo significado essencial é, de facto, intraduzível ou, pelo menos,
incomparável.
Já vi escrito que a palavra romena dor exprime um estado de alma, um sentimento em que há
“nostalgia, ternura, melancolia, lembranças, sonhos espirituais que quase levam
ao desespero”.
Não se negará que de tudo isto pode haver na
saudade portuguesa, mas há algo que melhor a caracteriza e é - a placidez, a suavidade melancólica, e não a revolta ou o
desespero.
Por isso Camões disse:
“Agora a saudade do passado,
Tormento
puro, doce e magoado
Que
converter fazia estes furores
Em magoadas
lágrimas de amores”.
Haverá, sim, pontos de semelhança, algumas
afinidades sentimentais entre a saudade portuguesa e o que exprimem semelhantes
palavras noutras línguas.
Mas o sentido vago e profundo, complexo e
indefinível de saudade - só na terra portuguesa, que se debruçou para o mar, se
pode compreender e sentir.
Reparemos ainda em que em nenhuma língua, como na
nossa, tal sentimento surge em saudações por mor de apartamento.
Em que língua descobrirão os poliglotas rigorosos
equivalentes com a ternura destas expressões portuguesas - dar saudades, carpir
saudades, fazer saudades?
- “Despediu-os de si com muita saudade.”
- “Mando-te muitas saudades.”
- “Quantas saudades tenho de ti.”
Evidentemente que se pode traduzir para qualquer língua
esta frase - morrer de saudades por alguém.
Por exemplo, em francês dir-se-á: Mourir,
s’embraser du désir de voir quelqu’un.
E, em latim, Cícero, como nos referem dicionários,
redigiu - alicujus desiderio mori.
Mas aquele morrer de saudades
ganha, em português, um poder de expressão muito mais intenso do que noutras
linguagens que procuram traduzir o mesmo sentimento.
E em que outra língua há um emprego tão natural da
palavra “magoada” como a saudade portuguesa?
A nossa palavra saudade
só corresponderia a outras de outras línguas, se Portugal não tivesse…
…“A alma pelo mundo em pedaços
repartida”.
Carlos Fiúza
5 comentários:
Em relação ao texto (realista) do nosso amigo JLM sobre a "Vila de Ansiães", eu tinha escrito um pequeno comentário e enviei-o mas o meu amigo e colega José Mesquita não mo publicou, talvez por compreensiva falta de tempo ou talvez o não tivesse visto. Mas relativamente a este soberbo estudo de Carlos Fiúza sobre a saudade (verdadeira marca identitária dos portugueses), e porque não saberia acrescentar mais nada àquilo que C.F. tão superiormente nos apresenta, apenas me ocorrem, neste preciso momento, duas definições das milhentas possíveis para a saudade:
1- A saudade é a presença da ausência;
2- a saudade é a ausência em pessoa...
Que C.F. continue a surpreender-nos agradavelmente.
h.r.
Eu também o saúdo ,HR(retire-me o dr,pois há muito tempo que tínhamos acordado tratarmo-nos todos por igual, apenas com as iniciais).
Eu sei que fica sempre maravilhado com os textos do nosso mestre de português, CF. Ele domina, na realidade todos os aspectos da nossa língua(e outras), etimológicos, semânticos e outros onde não chegam os meus conhecimentos.
No entanto, sempre direi que o saber de CF é um saber de nível universitário, de um nível que poucos professores universitários terão e isso faz com que eu, de linguajar simples, me sinta esmagado com tal nível.
Vendo-me já não apenas no meu lugar mas no lugar de um carrazedense normal, leitor assíduo deste blogue, imagino a dificuldade que terá em acompanhar os textos de CF.
CF escreve bem, sabe. Mas é de outra galáxia, não habitada pelo comum dos mortais.
Como é da sua área, imagino o prazer que lhe dará ler esta prosa, para mim um tanto esmiuçadora demais para os meus conhecimentos.
JLM
caro Carlos Fiúza
por mais imaginação que eu tenha .. não tenho contraditório ..
confesso que me convenceu..
Caro JlM
por mais imaginação que eu tenha .. não tenho contraditório ..
confesso que me convenceu..
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entre os argumentos apresentados pelos dois.. e se tratasse de um concurso .. de contraditórios
eu votaria no JLM
conseguiu conciliar a evolução barragista, com a visita de escafandro ao S. Lourenço na redoma, ao slide de 150 metros até ao Douro, à custa dos efeitos colaterais da destruição da linha do tua, do vale do tua , de todo o equilibrio harmónico de um ecossistema único, da destruição das vinhas únicas no mundo, dos olivais e de todo o desenvolvimento de trás os montes e da terra que o viu nascer..contribuindo assim para por em risco a classificação de património mundial de uma região que não é só nossa mas do MUNDO ,
e ... ter saudades do tempos dos "piolhos" e da fome..
eu sou saudosista mas das coisas boas
confesso que perdi
cumprimentos a todos
mario sales de carvalho
ps um pouco ausente mas sempre presente
máximas recentes sobre
" antigamente"
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"Antigamente as mulheres cozinhavam igual à mãe...Hoje, bebem igual ao pai!"
"Antigamente os cartazes nas ruas, com rostos de criminosos, ofereciam recompensas; hoje em dia, pedem votos"
Belo texto este do Carlos Fiuza. Tive de tratar o tema da saudade ha pouco tempo em trabalho académico e revejo-me nesta pequena dissertação, inclusive na referência a Carolina Michaelis, que tão profundamente tratou a questão etimologica do termo.
E concordo com a conclusão. Algumas das dimensões semanticas da saudade são traduziveis, outras são especificamente nossas. Como escreveu José Augusto Seabra, este termo ganhou ao longo do tempo significados tao complexos que acabou por cristalizar em si muitos elementos do imaginario português.
Parabéns, Carlos Fiuza.
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