“Dizem que os meus romances são do tempo em que as constipações se curavam com cozimentos de passas e chá de flores de barragem e erva-cidreira. Este sincronismo tem uma profunda crítica disentérica. Para as constipações dos sábios, a veterinária não tem adiantado nada” (Camilo).
Em todos os tempos houve disciplina e indisciplina, brio nacional e extravagâncias estrangeiradas, respeito do que é sério e gracejos mais ou menos zombeteiros ao que se não compreende bem. De modo que não admira muito que hoje, como já no tempo de Camilo Castelo Branco, vernaculidade lembre caturrice, pingo de rapé.
Têm-se escrito páginas e páginas, não apenas de exaltação divinizante, mas também de detração achincalhante acerca de Camilo e do seu estilo.
Há exageros de parte a parte. Exageros e confusões.
Vai-se até mais longe neste último campo: não se faz a necessária destrinça entre a “matéria” da obra literária, as ideias ou os sentimentos que ela expressa, e a “forma”, quero dizer, o processo de expressão verbal dessas ideias ou desses sentimentos.
Agrada tanto ao homem a filosofia que até se faz mister o engendrar-se o conselho de “viver primeiro e filosofar depois”.
Não admira, assim, que haja por aí filósofos, poetas e mais pensadores em grande abundância.
Ora, a fala (e a escrita é a fala da arte literária) é importante manifestação de vida nas pessoas.
É injustíssima a acusação que constantemente impende sobre Camilo: o emprego acaso abusivo de termos raros, causadores de enleios a muita gente que, desprevenida ou desapercebida no campo vastíssimo da língua portuguesa, não atina, de pronto, com o significado de numerosos termos camilianos, realmente raros no falar das cidades, principalmente da capital.
Mas Camilo não rebuscava termos, contra o que muita gente pensa. Lançava-os naturalmente na frase. E deve perceber-se que a um homem que escrevia com a abundância com que ele o fazia não sobrava tempo, de certo, para rebuscar palavreado.
Um escritor digno deste nome não deve andar sempre agarrado ao dicionário. Mas pior será que escrevedores inexperientes, sem intuição literária, se imaginem artistas e, não se dando ao trabalho de recorrer ao léxico, desatem a escrever à toa… EXPURGANDO!
Se em Camilo, por exemplo, não lermos a expressão “de alcateia”, a significar o que mais correntemente se diz “à espera, à mira, à coca, à espreita, de atalaia, etc.” poderemos sorrir com Eça de Queiroz por o “grande homem do vocábulo” acumular muito do que “o génio nacional inventou para se exprimir”.
O escritor que só com meia dúzia de termos consegue dar brilho, vivacidade, variedade, beleza, arte, verdade, à expressão de uma ideia, ao subtil traduzir de um sentimento, poderá classificar-se de “escritor pobre”?
A verdadeira riqueza de uma escrita literária está na escolha e distribuição apropriada dos termos, e não no seu amontoado.
Variedade na unidade - eis o justo equilíbrio, de que resulta a arte no manejar do instrumento da expressão.
“Sentou-se à braseira e preparou um cigarro, vagarosamente, que acendeu na aresta chamejante de uma brasa. Com o cigarro ao canto dos lábios e um olho fechado pelo contacto agro do fumo, foi abrir uma das vidraças, e pôs a mão de fora a sondar a temperatura. Coxeava um pouco. Recolheu a mão com desagrado e fechou a janela” (De A Brasileira de Prazins).
Admiremos-lhe a fantasia, a inteligência, aqui nesta bela imagem, acolá naquela magistral figuração; escutemos a melodia, a harmonia, o ritmo na música da sua linguagem; observemos o colorido, o pitoresco desta frase ou daquele período; apreciemos a sua graça, a sua tão elegante malícia; não lhe neguemos plasticidade, maleabilidade no frasear.
Quando numa obra de arte os defeitos são afogados pelo esplendor das excelências e pelo deslumbramento dos belos efeitos, não haverá motivo para evidenciar fatais interpretações.
Quantos e quantos romancistas e novelistas portugueses não vão aprender às páginas magistrais de Camilo?
Como sincero admirador do glorioso Camilo Castelo Branco, faço ardentes votos para que todos os seus discípulos e admiradores não pervertam a lição real da sua arte, apreendendo o que ela tem de eternamente admirável, e não o que pode apresentar de ilusoriamente atrativo.
“A casa onde vivo rodeiam-na pinhais gementes, que sob qualquer lufada desferem suas harpas. Este incessante soído é a linguagem da noite, que me fala: parece-me que é voz de além-mundo, um como burburinho que referve longe, às portas da eternidade. Se eu não amasse de preferência o sossego do túmulo, amaria o rumor destas árvores, o murmúrio do córrego onde vou cada tarde ver a folhinha seca derivar na onda límpida; amaria o pobre presbitério, que há trezentos anos acolheu em seu seio de pedra benta as gerações pacíficas, ditosas e incultas destes selvagens felizes que tão iluminadamente amaram e serviram o seu Criador” (De Amor de Salvação).
Este trecho é belo, porquê? Porque o Mestre soube traduzir bem, com palavras naturalmente procuradas, o que pretendeu descrever,
Natural fluir do pensamento em palavra - eis o necessário para que a perfeição da forma possa constituir admirável representação das ideias.
E para se avaliar a prosa de Camilo não se pode estabelecer como bitola o pobre e deslavado vocabulário da literatice barata. Para se apreciar convenientemente a expressão magistral de Camilo tem de penetrar-se na alma da língua portuguesa. E a alma da língua portuguesa tem os seus recessos no vocabulário do Povo.
“A literatura desapareceu do ensino do português”.
(Nuno Júdice, Poeta, Professor Universitário de Literatura - Expresso, 25/06/2011)
“A relação com o leitor está reduzida ao mínimo em Portugal”.
(Idem)
“Ler só contemporâneos não faz sentido, porque se perde o que está por detrás, o fio condutor”.
(Ibidem)
“Nem a ciência deles nem os meus romances hão de acrescer ou diminuir o número dos parvos”.
“E apesar de esmagado, volto-me para estes verdugos, e digo-lhes que não façam das suas magras letras projécteis de lama que lhes ricochetam ao rafado carão. Cuidem das suas obrigações estipendiadas, estudem uns pronomes, conjuguem uns verbos.
E fiquem-se com a vanglória de me terem acalcanhado”.
(Camilo Castelo Branco)
Ad pompam et ostentationem!
Carlos Fiúza
2 comentários:
Só uma pessoa que nunca entrou a porta de uma escola pode não conhecer e admirar a vida e a as obras com que Camilo Castelo Branco nos brindou.Ainda há muito pouco tempo visitei a casa onde ele viveu e devido ao seu estado de saúde "A CEGUEIRA" acabou por se suicidar.A única coisa que posso dizer é que adorei,assim como admiro as suas obras das quais tenho algumas.Ali se encontra aquele "SONETO QUE ELE ESCREVEU SOBRE OS AMIGOS QUANDO NO AUGE DA SUA DOENÇA DOS CENTO E DEZ OU TALVÊZ MAIS QUE ELE TINHA CONTADO SÓ UM NÃO ROMPEU "OS LAÇOS QUASE ROTOS"QUE CENTO E NOVE IMPÁVIDOS MAROTOS".Pude observar as cartolas,as bengalas que ele usava a pena com que ele escrevia e a respetiva secretária,bem como alguns pertences de ANA PLÁCIDO ENTRE OTRAS COISAS.
Para mim foi um sonho que há muito tempo me perseguia e acabei por concretizar.
NOTA:O SONETO ESTÁ ABREVIADO.
L. CARVALHO
Camilo foi,durante muitos anos,o meu escritor favorito.Li dezenas de romances de Camilo e tudo nele eu adorava,desde a escrita(os seus romances) à sua própria vida(o romance da sua vida).Penso,porém,que a escrita actual é um tanto diferente,pelo menor uso de adjectivos e pelos temas tratados,que já não dizem respeito a um país rural,entretanto remetido para o domínio dos museus, mas sim a um mundo global,que já pouco tem de bucólico e muito de científico.
Claro que a mudança de realidades implica uma alteração de linguagem.
Isso não quer dizer que não se continue a ler Camilo e os chamados clássicos.
JLM
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