Assisti, num determinado canal televisivo, a uma “mesa
redonda” sobre o nosso grande Eça.
Havia “queirosianos” ferrenhos e “antiqueirosianos”
igualmente ferrenhos. A dada altura os tons exaltaram-se… começaram a surgir
argumentos nem sempre serenos e desapaixonados.
Vem um admirador de Eça e afirma que o romancista
“transformou uma língua bárbara, dura, áspera, fradesca, solene, hostil, num
instrumento plástico, sonoro, dúctil, ondeante, diáfano, subtil”.
Logo surge outro a afirmar que os “principais defeitos do
escritor que é Eça de Queiroz contribuíram para a vivacidade e a magia dos seus
livros”.
Se ouvirmos a opinião de contrários, temos coisas como esta
de Fialho: “a primeira coisa que salta é a pobreza estrutural do estilo e a
miséria profunda do vocabulário repisado”.
Têm-se escrito páginas e páginas, não apenas de exaltação
divinizante, mas também de detração achincalhante, acerca de Eça de Queiroz e
do seu estilo.
Há exageros de parte a parte. Exageros e confusões.
Vejo, por exemplo, na magistral “Antologia” do Prof.
Agostinho de Campos, um trecho laudatório de Mateus de Albuquerque que termina
por estas palavras, depois de haver afirmado que em Eça “os defeitos são
qualidades” (sic): “Ele é o Mestre - e depois dele, ninguém que se preze, tem
mais o direito de escrever mal a língua portuguesa”.
Este curioso paradoxo não no posso evidentemente tomar a
sério, pois “direito de escrever mal” é afirmação que se contradiz por si
mesma. No entanto, este modo de ver é vulgaríssimo, com vulgaríssima é a
confusão de estilo e de linguagem, de alguns dos seus dotes e dos seus
defeitos.
Na verdade, perde-se, por vezes, a noção do que há de
pessoal, de individual, de gosto próprio no modo de escrever, no “estilo” de um
autor e, esquecendo-se o dito de Buffon de que “le style, c’est l’homme”,
aplica-se à linguagem, no sentido lato de expressão geral do pensamento, ou à
língua de uma nação o modelo do escritor preferido. Vai-se até mais longe no
campo das confusões: não se faz a necessária destrinça entre a “matéria” da
obra literária, as ideias ou os sentimentos que ela expressa, e a “forma”,
quero dizer, o processo de expressão verbal das ideias ou desses sentimentos.
Como, já por mais de uma vez, tive a ousada sinceridade de
pôr os traiçoeiros defeitos da prosa de Eça de Queiroz à compita com suas
virtudes, sinto-me à vontade para, em qualquer altura, particularizar quer a
apreciação admiradora a alguns dos seus muitos magníficos predicados de
Escritor, quer a crítica de acusação a vários dos seus malefícios na língua
portuguesa (que os praticou também, e alguns bem graves).
Desta feita e agarrando o tema em discussão na referida “mesa
redonda” - Estilo e Linguagem em Eça - vou buscar à estante (como exemplo do
bom em Eça) a magnífica obra - A Cidade e as Serras, e vou repartir pelo
contraste deste título algumas observações estéticas por mim apontadas à margem
dessa obra.
Diz-nos Eça que “Jacinto caminhou… gulosamente para a borda
do terraço (da basílica do Sacré Coeur), a contemplar Paris”.
Antes de partilhar tal contemplação, aprecie-se, desde já, o
poder expressivo daquele “gulosamente”, tradutor da avidez, do apetite de
alimentar o espírito com um pitéu de paisagem. Boa lição para aqueles que
desprezam as palavras chãs, cotidianas, mesmo que elas contem melhor do que as
mais raras quanto se tem para dizer.
- “Sob o céu cinzento, na planície cinzenta, a Cidade jazia,
toda cinzenta, como uma vasta e grossa camada de caliça e telha. E, na sua
imobilidade e na sua nudez, algum rolo de fumo, mais ténue e ralo que o fumear
de um escombro mal apagado, era todo o vestígio visível da sua vida magnífica”.
Nesta pincelada, com a insistência do adjetivo “cinzento”
(céu cinzento… planície cinzenta… a cidade jazia, toda cinzenta) ensina-nos o
Mestre que à teimosia da ideia deve corresponder a teimosia da palavra,
mostradora da teima.
Repetindo, simplesmente, por três vezes a palavra cinzento,
não precisou Eça de Queiroz de recorrer ao artifício de complicada frase para
comunicar à imaginação do Leitor o tom cínzeo da paisagem. Simplicidade na
Arte!
Note-se como a simplicidade verdadeira da comparação entre o
“rolo de fumo”, ténue e ralo, que mal se notava naquela imobilidade, e o
“fumear de escombro mal apagado” nos fotografa no espírito a pequenez do
vestígio da vida da cidade e a insignificância das magnificências dela!
Logo soltou uma exclamação chasqueadora:
- “Aí estava, pois, a Cidade, a augusta criação da
Humanidade.”
Eça de Queiroz procurava sempre ser exato no que descrevia,
procurava sempre empregar a palavra, a expressão que traduzisse fielmente o que
tinha para comunicar. E, uma vez agarrado o termo não o largava ainda que,
reparando ou não, tivesse de o repetir.
Tomemos o caminho da serra.
- “E em breve os nossos males esqueceram ante a incomparável
beleza daquela serra bendita! Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o
divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou e tão ricamente as
dotou, neste seu Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça.”
Repare-se em como Eça, empregando uma comparação simples mas
feliz, nos leva imediatamente o espírito à fantasia da semelhança imaginosa:
- “Para os vales, poderosamente cavados, desciam bandos de
arvoredos, tão copados e redondos, de um verde tão moço, que eram como um musgo
macio onde apetecia cair e rolar.”
Admiremos, a seguir, o forte poder expressivo alcançado pelo
Artista com o emprego de palavras chãzinhas como largo, estender, amável, leve
e sacudir, as quais, apesar de tão gastas, se compõem numa formosa elegância
descritiva:
- “Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas
ramarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros
sacudia a fragância.”
E o verbo “romper”, tão simples… veja-se como nos fotografa,
em perfeito instantâneo, o brotar das raízes:
- “Através dos muros seculares, que sustêm as terras, liados
pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes, a que mais hera se enroscava. Em
todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores silvestres.”
Parece estarmos a ver o que Eça nos descreve, quando lemos:
- “Brancas rochas alastravam a sólida nudez do seu ventre
polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados
floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas.”
Esta imagem comparativa é de uma perfeição surpreendente,
porque a imobilidade das rochas pareceria incompatível com o movimento de
galeras, se a nossa imaginação não concordasse na semelhança da rocha, que
parece irromper, com a galera que avança.
Tal imagem, porém, é logo excedida pela ousadia coerente da
seguinte, verdadeiramente modelar, que nos esmaga a admiração pela graça
sugestiva, pelo encanto da simplicidade posta nos elementos alegóricos:
- “… e de entre as (rochas) que se espinhavam nos cimos,
algum casebre, que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos
postigos negros, sob as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe
semeara nas terras.”
Como se sabe, as leis do estilo concedem à prosopopeia a
atribuição de sensibilidade ou de vida inteligente aos seres inanimados.
Está-se a ver que só os grandes artistas conseguem vencer o artifício
traiçoeiro de tal figura. Pois aprenda-se com Eça como é possível alcançar a
perfeição do estilo colorido com a máxima naturalidade imaginosa:
- “Por toda a parte a água sussurrante, a água fecundante…
Espertos regatinhos fugiam rindo com os seixos…; grossos ribeiros saltavam com
fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata
vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta à beira de
veredas, jorrava por uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados…
Todo o cabeço por vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral,
solitário, dominava como seu senhor e seu guarda.”
E a descrição prossegue admiravelmente simples na sua grandeza,
naturalíssima, sem um rebuscamento, um esforço, como se a própria paisagem se
esgueirasse de si mesma e viesse misteriosamente transformar-se nas tintas do
quadro pintado por Eça de Queiroz.
A concisão com que são formulados os tropos nem por isso
impede que eles surjam originais e sugestivos:
- “Nos centros remotos, por cima de negrura pensativa dos
pinheirais, branqueavam ermidas.”
O autor faz tudo quanto quer da nossa imaginação, leva-nos o
pensamento empolgado e submisso, convencido e dominado pelo arrojo hipnotizante
das metáforas justas, de assombroso aspeto analógico:
- “Frescos ramos roçavam os nossos ombros com familiaridade e
carinho. Por trás das sebes, carregadas de amoras, as macieiras estendidas
ofereciam as suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros
de uma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram hospitaleiramente, quando
nós passámos. Muito tempo um melro nos seguiu, de azinheiro a olmo, assobiando
os nossos louvores…”
As transcrições têm sido extensas. Mas eu suponho que ainda
se me permite mostre uma vez mais que a grandeza das figurações não é
incompatível (antes pelo contrário) com a singeleza, a desafetação do estilo.
Sublimidade de imagens não quer dizer ideias excêntricas às cavalitas de
palavreado difícil. Não se confunda extravagância com originalidade.
Depois desta exaltação de verdadeiras maravilhas
expressionais de Eça de Queiroz, manda a objetividade frisar que, ao par delas,
existem as falsas mas aliciantes, as quais são do particular agrado dos nossos
escritores medíocres ou dos críticos fanáticos e piscos.
É que o desgosto perante os defeitos queirosianos nasceu do
gostar muito e muito a expressão verdadeiramente artística do Escritor. Para
mim, as páginas imortais de Eça são, porém, aquelas em que a simplicidade de
expressão não precisa de se apoiar na estrangeirice para alcançar culminância
de beleza formal.
Não será acaso mais conveniente à glorificação do grande
Escritor a serena crítica ao excelente e ao mau das suas Obras?
E se estou a parecer coisa assim como um cardeal diabo, sejam
as minhas humildes palavras abafadas pelos hinos de glorificação a Eça, nos
templos académicos ou nas capelinhas literárias, desde que se desconte o cantar
do beatério e o dos falsos profetas…
Carlos Fiúza
12 comentários:
Aguarde mais algum tempo que eu vou dizer de minha justiça: é a minha obrigação.
JLM
Caro Fiúza: É minha obrigação tentar comentar o seu brilhante artigo. Tremem-me as pernas neste momento, tal a responsabilidade de dizer algo, que, pelo menos, possa ser lido e não destoe do que escreveu. O meu enfoque não tem a ver com o estilo de Eça, que, para mim, pobre mortal, é não só perfeito mas mais que perfeito.
Há duas impressões que transporto comigo já há muito tempo.
Parecem-me excessivas em Eça( e na escola realista) imensas descrições pormenorizadas, que, por isso, são de leitura penosa para a maioria das pessoas. Sobretudo nos dias de hoje, em que a imagem( fotografia, vídeo) suplanta com vantagem a descrição literária. Tudo o que diz respeito à trama do romance ou mesmo à caracterização das personagens é exemplar( não é um entendido que afirma isto!). Mas o uso da palavra para fazer o que hoje pertence à imagem torna a leitura dessas partes mesmo muito penosa para o comum dos mortais.
No livro que acha especialmente belo(A Cidade e as Serras), nunca notou que Eça se revela estranhamente bucólico e mesmo romântico, esquecendo-se da sua matriz realista? Ele não vê nas serras alguma da pobreza porca, própria da vida sub-humana, que a grande maioria dos camponeses forçosamente teria. Só vê as cores resplandecentes da paisagem ou o som corredio dos ribeiros cantantes e não se apercebe da fruta bichada que inexoravelmente as macieiras segurariam.
E era isto que eu queria pôr à sua consideração.
JLM
Meu caro JLM
O seu raciocínio é brilhante, bem estruturado.
Ainda bem que leu Eça (no nosso tempo era “obrigatório”, não era?
Na verdade ele é tudo isso que diz.
Dado ao bucolismo… a realidade que melhor conhecia era a francesa.
De Portugal e da sua realidade conhecia muito pouco. Da “fala” do povo, então, não conhecia nada… ou quase.
Era, isso sim, um irónico (como o meu amigo o é).
As maças “bichosas” de que fala, Eça não as conhecia… muito menos as comeu.
Não eram as próprias macieiras (por ele tão divinamente descritas) a oferecerem só as maçãs verdes?
O azar foi dele: as maduras ainda estavam por vir.
Como as poderia ter provado?
Como “aperceber-se” das “bichosas” de que fala o meu amigo?
Quanto à leitura, tem razão.
No tempo de Eça não havia outra “distração” que não os livros.
Terá sido por isso que se tornou escritor e não realizador de “media”?
É que, nos tempos que correm, já não há tempo para outra “leitura” senão a desportiva.
No tempo de Eça não havia tantos “treinadores de bancada” como hoje.
Hoje pensa-se menos… e Eça era um “pensador”.
O seu “pensar” rápido, irónico, levou-o a “passar” a alfândega americana, quando barrado.
Quando interpelado pelo agente alfandegário qual a razão de levar na mala tantas gravatas, respondeu que as colecionava e que eram todas para uso pessoal.
Como o agente se recusava a acreditar que fosse verdade, ameaçando confisca-las, sabe como reagiu Eça?
Recorrendo a uma arma que bem dominava - a ironia, respondendo:
“Senhor agente. Se a América, um país tão novo, pode ter 50 estados por que razão não posso eu, velha carcaça, ter 200 gravatas?”
Abraço
É relativamente fácil perceber a simpatia de CF pela escrita e o estilo queiroziano. E eu acompanho-o no gosto, pois Eça é para mim um dos mais completos (mesmo a nível estilístico) escritores portugueses de sempre.
Na verdade, podemos distinguir tr~es fases marcantes no percurso literário de Eça de Queiroz:
- uma primeira parte pré-realista, com um determinado recurso ao fantástico e até ao fantasmagórico, como, p. ex., em "Prosas Bárbaras";
- uma segunda fase, realista, obedecendo aos ditames do naturalismo. É nesta fase que Eça usa a carta como meio de transformar a sociedade, denunciando sem contemplações, a sua podridão... ("Os Maias"; "O Crime do Padre Amaro" e "O Primo Basílio").
- numa terceira fase, Eça como que se liberta da escola realista, abandona o tom de denúncia dos males da sociedade, convencendo-se, quiçá, da inutilidade da cruzada em que se metera na segunda fase do seu percurso literário ("A Ilustre Casa de Ramires" e "A Cidade e as Serras").
Na referância ao "pícaro", a sua passagem para a literatura faz-se ainda no séc. XVI, nas chamadas obras "lupanárias", essencialmente, sob a forma novelesca, a partir da conhecida veia satírica dos castelhanos. Em Portugal o pícaro surge com a publicação de "O Lazarilho de Tormes", tardiamente traduzido e onde se converteu primeiro em apetecido livro de cordel, com imensas variantes, edições e adaptações, onde a paródia reinava.
À priori, os motivos que incitaram a procura de uma novela picaresca na literatura portuguesa, foram os seguintes:
- a exist~encia de temas afins do pícaro na poesia galego-portuguesa;
- a reaparição e a insistência desses temas em Gil Vicente;
- a grande influência global da literatura e da cultura castelhanas do cultismo e do concetismo em Portugal;
- o bilinguismo cultivado em Portugal até finais do séc. XVII;
- o facto de muitas outras formas literárias castelhanas terem influenciado diretamente a área da literatura portuguesa nos sécs XVI e XVII.
Em suma, aqui ficam alguns tópicos em relação ao excelente texto de Carlos Fiúza e que me pareceu pertinente acrescentar.
Por esquecimento, não me identifiquei no texto anterior datado de (qua Nov 20, 11:36:00 PM). Pelo facto, apresento as minhas desculpas.
HR
Meu Caro anónimo
Diz que gostou do meu texto. Obrigado por isso.
Que dizer do seu?
Bem concebido, produto de uma mente bem “arrumada”, conhecedora do que fala.
Parabéns.
Foi um prazer lê-lo.
Se puder, diga-nos o seu nome.
O seu intelecto não pode ser só seu… partilhe-o!
CF
Amigo Carlos Fiúza,
eu já me identifiquei no texto anterior a este seu último comentário.
HR
Meu Caro HR
Acredite, ou não, "desconfiei" que o "escrito" era seu.
Não sei porquê (ou talvez saiba!) mas o seu "estilo" é indonfundível.
Breve, preciso,conciso...
JLM, se ficou com as "pernas a tremer" (como ele próprio confessa)quando me leu, a estas horas deve estar em "estado comatoso" após a sua participação!
Obrigado pela sua intervenção.
Abraço,
CF
Caro CF,
este seu comentário teve o condão imediato de me fazer rir (e tanto precisamos de rir...). Mas olhe que o nosso amigo JLM já não é dos que treme...
Um abraço para os dois.
HR
Tremo, tremo. É que CF, quando era professor, fazia não só tremer os alunos(coitados), mas provocava neles uma irreprimível corrente quente de um nosso conhecido líquido, que lhes escorria pelas pernas abaixo.
Ora, eu, quando com o mestre me cotejo, não sou capaz de me ver noutro sítio que não seja na posição de seu aluno tremente e temente.
JLM
Sempre exagerado este JLM!
Ou será a sua mui sagrada "costela irónica" a repontar?
CF
Amigo JLM, com o humanismo e sensibilidade que da escrita de CF emanam, não creio que alguma vez tivesse feito tremer ninguém e, muito menos, o nosso "picaresco" mas afável JLM.
Um abraço aos dois.
HR
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