A melhor
metáfora que se pode atribuir à história do homem é a de uma viagem. Toda a
vida do homem primitivo está marcada pela viagem. A sua sobrevivência dependia
de uma contínua caminhada. Era sempre preciso abrir um novo trilho, avançar
pelas praias, pelos vales e pelas montanhas porque ficar parado num só lugar
seria contranatura e perigoso. Escolher um único espaço para lar significava
morrer de fome.
Nós, os
humanos fomos caçadores-recolectores muito mais tempo do que temos sido
agricultores, estima-se dez a quinze vezes mais. Só agora nos estamos a tornar
numa espécie que vive sobretudo nas cidades. Se dissermos que isso só acontece
há apenas um ou dois séculos, o nosso rasto de caçadores-recolectores torna-se muito
mais longo.
A história humana
começa quando deixamos de ser presa e caçador, de comer e ser comido, isto é, do
deixar acontecer para fazer acontecer. Há cerca de duzentos mil anos evoluiu em
África o Homo Sapiens com os cérebros do tamanho do nosso. Mas só há cerca de
setenta mil anos, por circunstâncias ainda pouco esclarecidas, quiçá uma única
tribo, ou apenas um muito pequeno grupo, partiram desse continente e iniciaram a
grande viagem, num movimento de duração milenária que culminou na disseminação
por todo o planeta.
Parecendo
lenta, esta dispersão do Homo Sapiens foi muito rápida, se a compararmos com um
milhão e meio de anos da do Homo Erectos. E assim feita a comparação é como se
até ali o processo fosse mais ou menos linear e de repente acontecesse uma
explosão.
Não se menospreze
os nossos “egrégios avós”. Estes caçadores-recolectores tinham de ser capazes
de fazer uma diversidade de coisas que o atual homem urbano, que é especializado
numa única arte e ou ofício. Por isso estima-se que os atuais homens perderam
cerca de um décimo do volume total do cérebro em comparação com o povo da
última era glacial. É certo que, à altura, eliminaram alguns iguais e erradicaram
outros seres vivos, mas de forma nenhuma comparável aos contemporâneos e
horrorosos genocídios e destruições ambientais. Por isso, devemos estar conscientes
de que os homens que saíram de África foram criaturas extraordinárias e não
aterradoras.
Voltamos
mais uma vez à alegoria da viagem. Estes homens sobreviveram em condições
adversas que hoje face à comodidade dos novos tempos, mal podemos compreender. Tiveram
de alterar repetidas vezes os seus comportamentos e hábitos para sobreviverem. O
Paleolítico foi o tempo das camadas de gelo avançarem e recuarem pondo à prova
os mais extremos limites. A sobrevivência do Homo sapiens face ao homem do
Neandertal deveu-se à quantidade e qualidade de ferramentas que soube construir
para fazer face à adversidade. A agulha e o equipamento de caça, particularmente
a técnica do arremesso, foram as suas duas armas mais importantes e
extraordinárias de sobrevivência. E por isso esta viagem, que aqui nos trouxe,
resultou porque somos bons a adaptar-nos.
A partir do Neolítico, o
homem torna-se sedentário para cultivar a terra e criar o gado. Graças à
agricultura, a população mundial cresceu extraordinariamente. Ao deixar de
andar de um lado para o outro, o bando de caçadores-recoletores instalou-se
para cuidar de colheitas e animais, desenvolveu povoados, depois cidades e, por
fim, civilizações.
Com mais humanos sobrou menos
território para caça, e a agricultura tornou-se a quase única solução de
sobrevivência determinando o êxito de toda a história da humanidade: os
excedentes fizeram divisões de classes, soberanos e sacerdotes, exércitos,
conquistas, revoluções… O reverso da moeda, que a civilização agrícola e
pastoril acrescentou foram a complexidade das relações sociais, a multiplicação
dos conflitos, o aparecimento de novas doenças, (as vértebras deformadas, dores
de costas, os dentes podres, epidemias), até menos altura (estima-se menos 15
cm) e, consequentemente, menos tempo de vida (2 a 3 anos em média).
Ao contrário do que muito
estudo de arqueologia afirma, cujo interesse focado na Europa, leva erradamente
a pensar ser esta o umbigo do mundo, é o Oriente que vê nascer as primeiras
grandes civilizações. O velho continente permanece habitado por pequenas
comunidades, primordialmente povoados e abrigos. Estas coletividades usavam instrumentos
de pedra e fabricavam pontas de setas, machados, mós, percutores, furadores,
pesos de tear…, tornados indispensáveis na obtenção dos alimentos e no fabrico
de vestuário. Mais tarde, com um desfasamento de alguns milhares de anos em
relação ao Oriente, começam também a ser utilizados os primeiros metais.
Estas comunidades agrícolas
do oeste da Europa, em que a caça continua a ser uma fonte importante da
obtenção dos alimentos, cultivam os primeiros cereais, inscrevem nas pedras as
suas vivências e memórias, veneram os seus mortos, a quem erguem imponentes
monumentos construídos de pedras levantadas, que, por vezes, tinham um corredor
de acesso e uma câmara coberta.
São alguns destes sinais que
vos apontamos nesta viagem, sinais inscritos nas pedras e edificados com
pedras, querendo com isso porventura alcançar a eternidade. São de uma beleza
singela, clara e luminosa, sempre enquadrados de paisagens que nos tiram o
fôlego, que nos permitem regressar às nossas origens e descobrir a essência da
vida e da existência humana.
É este o mundo que o Dinis
Cortes nos traz nesta surpreendente viagem do Primogénito. Elaborada de um
fôlego, mas com grande mestria no uso das palavras e na descrição histórica:
dos homens, das paisagens, dos instrumentos e das peripécias. Esta breve
odisseia reflete uma imensa paixão pela região e pelos seus inúmeros vestígios
pré-históricos.
O “excesso de natureza” com que Torga legendou esta
paisagem duriense está preenchida de pedras e grutas singulares, buriladas de
gravuras, de que o Côa é a obra maior porque
manifestamente muito grandiosa e sublime, mas também de pinturas e sinais
misteriosos, salpicada de vestígios e artefactos que o olhar atento pode
observar...
Este livro é também o
resultado de muitas caminhadas. Considero-me um afortunado por ser companhia do
Dinis Cortes nestas jornadas inolvidáveis para o desfrute da natureza e dos
sinais que ela nos oferece. Tive o especial privilégio de contar com um guia douto,
entusiástico e entusiasmante. Estas caminhadas, sempre cheias de marcas do
passado, estão ali ao alcance de todos os sentidos e da imaginação instruída
para um total desfrute.
Este livro é uma viagem pela
desejável natureza humana. Nasce de uma inquietação interior. Uma coluna de
fumo visionada no horizonte predispõe para a aventura e para uma singular
jornada feita de extraordinárias descobertas, pautadas pelo desejo do saber e a
salutar convivência social. O Primogénito é um jovem bravo, hábil e artista que
inicia uma viagem em que a curiosidade e a aventura o norteiam.
Este livro é uma viagem como
deveria ser a nossa vida: o mérito e a procura da sabedoria são o ponto de
partida; o bem-fazer e a competência formam o itinerário; e o ponto de chegada
conflui na sua realização pessoal, que é também a dos outros. E se alguma lição
se pode extrair é a de que o homem se realiza na hierarquia da idade e da
competência, e evolui no contacto com o outro, na troca de saberes e técnicas e
no confronto de opiniões.
Podemos concluir que esta só aparente
humilde viagem é, no entanto, uma coisa bem séria, e posso até parafrasear
Garrett, n´As viagens na minha terra,
“eis aqui a crónica do passado, a história do presente, o programa do futuro”.
Convido-vos a ler este livro
para uma viajar no tempo, para, como Saramago, ver o que não foi visto, ou
então para ver outra vez o que já foi visto, porque o que se vê no verão é
sempre diferente do inverno; porque a poesia que brota de nós na primavera
nunca é igual à sentida no outono, porque o que se vê de dia não é igual ao
observado de noite, porque o que traduz a leitura do texto não é o que a nossa
imaginação alcança, mas aquilo que somos.
Convido-vos a subir à Serra
de Passos, marca essencial e natural ponto de partida para esta aventura da
descoberta porque aqui se encontra um dos maiores e impressionantes santuários
de vestígios do homem do Neolítico. Convido-vos a aí perscrutar os horizontes e
a ver nascer a vontade da descoberta e do encontro com o outro. Convido-vos a
visitar a Pala Pinta em Alijó, o Cachão da Rapa em Ribalonga, Carrazeda de
Ansiães, a extraordinária Fraga da Aia em São João da Pesqueira e o Abrigo
Pré-histórico de Penas Roias em Mogadouro para compreender toda a magia que,
desde tempos imemoriais, está inscrita nos nossos genes. Convido-vos a viajar
aos dólmenes da Areita e do Vilarinho da Castanheira para uma reflexão sobre a
intemporalidade e como tornar esta breve viagem que todos empreendemos no
nascimento, a tornar-se uma “experiência sem par”.
Como escreve Torga, “viajar
num sentido profundo é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto
e desfazer-se em espanto, em desilusão, em cansaço, em movimento pelo mundo
além”. E eu, que já tenho alguns “espantos” de bastante Europa visitada, ainda
não encontrei viagens mais reconfortantes que as viagens na minha terra.
Esta
viagem pode começar hoje e aqui, venham daí!...
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