Decidiu recostar-se no comprido banco de madeira. O dorso, quase comido pela carrada de anos, refilava de dor e fazia-lhe arquejar o peito. Ainda levou a palma da mão ao sítio do coração porque lhe parecia que o sentia roncar do fundo de uma caverna. Que não se lembrasse agora de interromper a longa corrida. Estava ali sozinho há mais de duas horas. Era a sala de espera de uma velha e pequena estação. Tinham-lhe dito que o comboio passaria ali às dezanove e quarenta e cinco. Mas em Dezembro, a posição da lua, encavalitada no pico da escarpa que se erguia do lado de lá do rio, nunca o enganara. Pelas suas contas, haveriam de ser já umas dez, a passar. Cerrou mais a gola peluda da samarra à volta do pescoço. Não sentia os pés, colados sobre o chão de cimento. Começara a tiritar. Se andasse um pouco? Tentou. Fincou os osssos dos dedos nas costas do banco e logrou erguer-se. Arrastou um passinho tímido, com o olhar ansioso cravado na porta escancarada ao frio assassino. Se a pudesse fechar... Conseguiu apenas uns míseros segundos de pé, como uma giesta impelida pelo vento. Sentou-se. O olhar aguado, o beiço grosso, pendente, trejeito triste, como se sentisse ali a morte a germinar. Dentro de si a noite era mais escura do que a outra que ele via mesmo à sua frente. Se alguém viesse, talvez houvesse uma fogueira redentora. Mas não haveria ninguém. O negro comboio tardava. Se calhar, nem comboio havia. Então aos domingos não parava ali o das dezanove e quarenta e cinco? Ou não seria domingo!? O tempo. Agora dava em enganar-se na corrida do tempo. Foi o que fez a longuíssima mastigação sucessiva dos dias. Sempre a remoer memórias. Mas há muito que ele perdera o futuro de ontem. Agora, ao frio, à fome e ao desespero, assaltava-o a dúvida dolorosa dos dias. Talvez fosse sábado. Mas ao sábado não passa o comboio das dezanove e quarenta e cinco. Sentiu-se mais abafado. Com a manga da samarra limpou o nariz sujo de muco e sentiu pena dele próprio, perante aquela triste e inexorável condenação à caquexia. Quando era novo, diziam-lhe que era bonito ter oitenta anos. Pois. Com o dorso alquebrado, grotesco, sacudido pelo arfar do peito roufenho, sentiu-se adormecer. Mas apenas a cabeça pendeu para o lado, logo se recostou de novo. Parecera-lhe sentir o silvo do comboio. Deitou um olhar de soslaio à escuridão, como se não quisesse espantar a luz do pretenso comboio. Esperou com a alma em sentido. Seria aquilo a esperança? Esperou. Se não fosse o correr do rio no estreito vale de fragas, o silêncio haveria de pesar ainda mais entre as paredes da salinha de espera. Mas não. Felicidade esfarelada. O tempo ria-se dele. Afinal era sábado. Não passava ali o comboio das dezanove e quarenta e cinco. Encolheu as pernas para enganar o estilete do frio. Sentiu-se molhado de um mijar inconsciente e sorrateiro, rompendo o sigilo do seu descomposto torpor. Entrelaçou as mãos. Mas a lágrima, como uma pérola, passou ao lado e caiu-lhe nos pés cruzados. Deixou-se tombar no banco comprido de madeira. Que sentido poderia ter a bênção terrena daquele piedoso invólucro de água e sal, sangue e vísceras decadentes? Deixou-se estar deitado. Encolhido sobre as tiras de madeira. Ainda ressonou um pouco, zangado com a lua traiçoeira. Mas foi por pouco tempo. Quando o comboio negro ali parou com um olho de luz matando a noite em volta,, um funcionário acercou-se do corpo gelado e mandou chamar as autoridades competentes para o levarem, sobre carris, para a morgue. Afinal era domingo!
Hélder Rodrigues
20 comentários:
SIMPLESMENTE ESPECTACULAR!
Parabéns, gostei muito.
E ainda vem o senhor JLM dizer que isto é popular e que o outro é que é erudito! Quem me dera escrever assim!
Vale a pena ir ao BLOGUE para se ler uma históris detas.
TEM TANTO DE TRISTE COMO DE BONITA E QUE RETRATA BEM O QUE SE PASSA NOS NOSOS TEMPOS.
SE É INÉTIDA TEM AINDA MAIS VALOR.
PARABÉNS SENHOR DOUTOR HELDER RODRIGUES.
MF
Ser popular não é sinónimo de sem nível.É ser acessível ao entendimento da grande maioria,o que,para mim,se traduz num mérito.
Ser erudito é que pode ser,muitas vezes, de baixo nível, porque,em vez de nos falar de ideias e sentimentos,fala-nos dos autores dos escritos sem que nos elucide sobre o conteúdo destes.
Considero que tanto HR como VAV são eruditos no bom sentido:conhecem os autores e interiorizam e transmitem-nos as suas ideias.
JLM
Gosto em particular deste "artigo".
Ele confronta-nos,numa linguagem literária, com a nossa condição humana,com a velhice,com a desorientação mental que a acompanha e com a morte. E com o isolamento,o abandono e a pobreza.
Com a leveza do ser,em suma.
JLM
Tem razão o senhor JlM, pois isto é que é a verdadeira literatura. Carrazeda bem se pode orgulhar de ter lá escritores desta grandeza. Olhem que não é qualquer terra que tem pessoas assim de tanto valor. Podem crer.
Descobri esta sua escrita ritmada e crua neste blog e, devo dizer, que estou viciada: venha cá para, quase só, ver se tem mais alguma coisa "postada".
Fico à espera do próximo...
Teresa Nascimento
Só é pena que nenhuma das listas queira levar o barco a bom porto, com HR ao leme da Cultura.
Há quanto tempo não tenho o prazer de ler literatura tão boa como esta. É terrivelmente triste ver os escaparates das livrarias, as bancas dos hipermercados carregadas de lixo que vende em abundãncia quando escrita assim passa discretamente num discreto blogue. Belíssimo, cheio de alma. Parabéns ao autor.
Rafaela Plácido
As donas teresas e rafaelas devem ler munto pouco. Ao vav, quem lhe deu o ser foi o Gil. Ao professor HR, valha-as Nossa Senhora. Leiam o meu Gil e depois vejam as diferenças do popular para o competente.
Rita
Esta Rita é mesmo ridícula ao achar que o Gil é dele. E já agora, como é, o Gil ressona muito de noite?... Pelo que escreveu em cima, deve ler muito pouco ou nada, pois só mostra ignorância e falta de educação em relação aos outros autores da nossa terra. Eu acho que a Teresa Nascimento, a Rafaela Plácido, o xo-ox, o senhor JLM e outros anónimos que aqui se pronunciaram em relação a este texto do Hélder Rodrigues,se mostram muito mais esclarecidas, analisando bem o que é, também para mim, um excelente texto literário. Devemos antes estimular a criatividade e não desencorajar infantilmente, como fez esta rita que é... do Gil. É mesmo para fartar de rir.
Dona Rita, não fora eu ter alguma afinidade com o seu Gil e diria que, além de deselegante, me pareceu ressabiada com algo que desconheço... Lá porque o seu Mestre Gil é competente nas letras, isso não faz dos seus alunos asnos da linguagem, nem dos seus leitores iliteratos.
Já agora, Dona Rita, que revistas lê?!... Onde poderei eu, uma confessa ignorante, ter acesso às suas doutas críticas literárias?!...Se soubesse como eu gosto de aprender com as grandes sabedorias!...
Informe-me, por favor, em nome da divulgação do verdadeiro conhecimento.
Rafaela Plácido
a dona rafaela também nao està ressaibiada com o ressonar do Mestre HR?! é que este ataque do seu Mestre às 6: 39 è do pior e voce acha normal. O Gil está muito acima,vocês têm todos è dor de cotovelo.
rita
Muito bem, Rafaela, eis uma senhora bofetada de luva branca... para a rita do... Gil (aqui, na questão da pertença, não posso reprimir uma risada). Mas aqui para nós, o amigo Gil bem merece coisa melhor...
E para a Rafaela dentro do HR, também não há nada? Tudo!
Afinal esta rita é mesmo de muito baixo nível A denotar assim tanto desespero, é porque o amigo Gil a deve ignorar. E, pelo que se vê, faz ele muito bem!
coitada da rita, ela continua a sonhar com o Gil, a sonhar, a sonhar.
Em que é que esta discussão entre os 3 R contribui para a felicidade dos carrazedenses, senhor administrador?
Isso só deve perguntar à tal Rita. Ninguém sabe que bicho lhe mordeu ao insultar as pessoas, por causa de um simples e inofensivo texto. Realmente estas pessoas assim, não contribuem em nada para a felicidade dos carrazedenses. Mas pergunte-lhe a ela, se faz favor.
Enviar um comentário