20 setembro 2016

Viva El-rei! Viva o Povo! Morra a Companhia!


A crescente fama dos vinhos do Douro redunda em crise, que teve particular acutilância no início do século XVIII com o aumento da fraude que se torna generalizada pondo em causa a sua qualidade, levando à criação da Companhia Geral de Agricultura das Vinhas do Alto Douro, instituída por Alvará Régio de 10 de Setembro de 1756. O aumento dos preços e a monopolização do setor redunda em revolta nas tabernas, numa primeira fase, e virá rapidamente para as ruas.
 Os motins do Porto contra a Companhia decorreram na primeira parte do mandato de Sebastião José de Carvalho e Melo (1750 a 1777) e constituíram um teste à autoridade do marquês. A cidade da “liberdade” e da pujança do livre comércio tinha as características para testar a força da autoridade do governante em ascensão e uma boa oportunidade para subjugar a natural e histórica insubmissão das suas gentes.
A narração dos acontecimentos apoia-se em duas fontes fundamentais – as informações ou contas dadas pela Câmara do Porto a el-rei acerca do motim e o texto da Alçada que relata pormenorizadamente o ocorrido. Há ainda uma outra versão escrita pelo padre Agostinho Rebelo da Costa, 30 anos depois, que terá de ser entendida como uma tentativa de ilibar o bom nome da cidade.
Vamos aos factos relatados pelo auto da Câmara.
Era uma normal Quarta-feira de Cinzas, do dia 23 de Fevereiro do ano de 1757. A celebração do dia santo implicava a observância de feriado obrigatório por parte da população e, por conseguinte, uma disponibilidade de um grande número de pessoas, pois as celebrações religiosas só estavam marcadas para a tarde desse dia.
Era manhã, “pelas dez horas e meya da manhaa se congregarão vários rapazes com algumas mulheres no Terrº da Cordoaria desta Cidade, e entrando amotinados pela porta do Olival com um lenço arvorado em huma vara romperão em altas vozes dizendo Viva El Rey, Viva o Povo, e Morra a Companhia”.
Encaminharam-se para a rua de S. Bento da Vitória na direção da Praça de S. Domingos, onde se concentraram largas centenas de pessoas. Nessa rua vivia o Juiz do Povo que foi forçado a acompanhar os manifestantes, apesar de se dizer doente. Na frente da multidão e levado numa cadeirinha onde foi obrigado a sentar-se ouvia incomodado a vozearia feita palavra de ordem da multidão “Viva El-rey! Viva o Povo! Morra a Companhia!”.
Seguiram pela Rua das Flores, Terreiro das Religiosas de S. Bento, Rua do Loureiro e Rua Chã onde vivia o Desembargador e Corregedor do Crime e que servia de Chanceler e Governador das Justiças, o mais alto representante do Poder na cidade invicta “aonde chegarão incorporados mais de sinco mil pessoas, cujo número constava de rapazes, gallegos, marinheiros, mulheres e alguns officiais e homens de Capote, que mostravão ser pessoas de baixa esfera, porem, a nenhum se vio arma de qualidade alguma”.
O governador desceu à rua e ouviu a multidão que procurou “sossegar com a madura prudência”. Para desmobilizar os ânimos cedeu nas reivindicações proclamando o livre comércio do vinho e a extinção da Companhia, esperando com otimismo que sua Majestade confirmasse esta resolução para que tomasse efeito legal. No regresso por onde vieram, a ira da multidão alimentada pelo deferimento conseguido, deu de caras com a casa do Provedor da Companhia, Luís Beleza de Andrade, e logo choveram pedradas para as janelas. De dentro e de súbito foram disparados dois a três tiros que provocaram ferimentos graves em duas pessoas, mas não puseram em perigo as suas vidas como referem os autos da Câmara. Maior furor se acendeu no Povo que, num abrir e fechar de olhos irrompeu pelas portas e destruiu o rés-do-chão e o jardim.
Igual ou ainda maior raivosa investida foi feita aos escritórios da Companhia, contíguos à residência do Provedor onde provocaram estragos, lançando para a rua diversos papéis e livros. E mais não se passou pois acudiu a Guarda a requerimento do Juiz de Fora que pacificamente, sem represálias violentas, a mando do seu capitão serenou os ânimos “impedindolhes a resolução de deytarem à rua o dinheiro da mesma Companhia que nellas se achava com a voz de ser o mesmo dinheiro pertencente a V. Majestade”. Nesta altura, os acontecimentos tinham juntado muita gente perfazendo mais de 20 000 pessoas.
O governador pediu a ajuda de outros magistrados para suster a fúria popular recomendando-lhes que usassem de toda a prudência. O tenente-coronel, responsável pela defesa da cidade entretanto chegado com diversos militares tomou uma posição defensiva fazendo dispersar as pessoas. Na versão da Câmara ouve ainda confrontos instigados por alguns arruaceiros de que resultaram alguns soldados feridos, destacando-se um com mais gravidade pois passados dois dias ainda estava doente.
Às três da tarde ordenou-se aos franciscanos que pusessem a procissão de penitência programada para aquele dia na rua para “divertir o povo”. Nada mais ocorreu mas a prevenção das forças de segurança prolongou-se.
As informações dadas pela Câmara do Porto a el-rei acerca do tumulto estão escritas com todos os pormenores e dão a ideia das movimentações se tornarem uma torrente crescente, difícil de suster, sempre na ideia de a única responsabilidade ter de ser abonada às classes baixas e dando sempre pouca importância aos factos graves considerando-os de pouca monta e fruto da inconsciência e pouco esclarecimento da multidão, pois “foi mais poderosa a ignorância que a vontade”. A desculpabilização das classes gradas da sociedade é uma constante. “Este inopinado sucesso que pomos na real presença de Vossa Majestade sendo de universal sentimento para toda a nobreza e homens bons d`esta cidade, se nos faz mais sensível, porque gloriando-se ella sempre de ter V. Majestade n`ella os mais obedientes e fiéis vassalos, com esta acção de um povo ignorante, poderá ficar em dúvida a obediência de todos...”
Ainda se relata que foi feita uma inquirição para saber se alguma Cabeça ou figura da cidade esteve implicada concluindo-se que não e todos os inquiridos lamentaram o sucedido. O relato prossegue com as razões de a Câmara não ter comparecido como instituição pois vários vereadores encontravam-se ausentes ou noutras tarefas, nomeadamente religiosas, tendo em conta o dia, os acontecimentos teriam sido tão rápidos que não houve tempo para fazer representar a instituição.
É a Câmara que explica, ainda o motivo por que foram tocados os sinos da Misericórdia a rebate, relatando dever-se a dois rapazes de pouca idade que se introduziram de forma oculta na Torre a que logo se acudiu impedindo-os e castigando-os.
O relato da edilidade aponta a causa dos excessos não se coibindo a afirmar que ela se encontra nas queixas da população com a Mesa da Administração da Companhia para o preço do vinho e sua qualidade.
A finalizar prostram-se aos pés de S. Majestade “com o mais profundo respeito” e ratificam a sua “fidelidade e obediência”.

O motim foi particularmente festejado pela população já que, como vimos, os populares pensaram ter conseguido a extinção da Companhia por parte da maior autoridade da cidade e o livre comércio dos vinhos. Foram afixados editais pelo burgo e a boa nova foi também dada através de pregões e ao rufo de tambores. A seguir há de vir a repressão brutal, que se quis exemplar.

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