12 setembro 2013

I Love Trás-os-Montes: Daniel Conde



Estreou uma nova série juvenil na TVI: “I Love it”, título na senda do aproveitamento (ainda?) original deste canal do título ou trecho mais conhecido de uma canção para nomear as suas séries de ficção.
Coincidentemente, uns dias depois recebo um email carregado de alguma crispação de um amigo conterrâneo trasmontano, invectivando que a TVI andava a tratar os trasmontanos de, passe-se a expressão, “atrasados”. Apelei brevemente à minha memória, para me lembrar que há não muito tempo atrás, as reportagens da TVI que invocavam à imagem do “Portugal profundo” – seja lá isso o que realmente for – tiveram um período em que iam bater sempre a Trás-os-Montes. Qual o intuito dessa insistência, só poderemos especular, até porque com algumas parcas diferenças, também a SIC seguiu já essa mesma senda.
Tentei informar-me um pouco melhor sobre a origem deste mal contido desagrado, e fui dar de caras com um grupo no Facebook denominado “Parem de humilhar os Transmontanos no I Love it”. Fez-se luz; ou melhor, foi-se fazendo alguma luz. Continuei a pesquisa, começando por encontrar, na página oficial da série, um clip com um título muito sugestivo, que não deixava adivinhar nada de bom: “Roupa do Crisma para sair?”.
Visualizei o dito clip. Como é que em tão pouco tempo de vídeo consegui sentir tantas sensações contraditórias, é um mérito que apesar de tudo há que reconhecer à equipa da série. Parece que afinal a caixa de Pandora deste levantamento trasmontano (já agora, eu não sou de TraNs-os-Montes, sou de Trás-os-Montes; não me considero traNsmontano, mas sim trasmontano) está numa personagem desta série, que terá origens trasmontanas, e que denota um défice cultural evidente, perante os extraordinariamente bem-versados personagens cosmopolitas com que interage.
E aí vem um verdadeiro festival psicadélico de emoções, a começar – imagine-se a minúcia dos criadores da personagem no pormenor – pela extraordinária coincidência do apelido da personagem: Moás.
Poderá ter escapado à generalidade dos portugueses – obviamente e sem animosidades a apontar – mas a mim, trasmontano vinhaense, a evidência foi por demais notória: Moás é o nome de uma aldeia trasmontana, do concelho de Vinhais, povoado que se inça altaneira e espreguiçadamente em cunha sobre os belíssimos vales do rio Tuela e rio das Trutas, e o qual já tive o prazer de visitar algumas vezes. Fabulosa e conveniente escolha do apelido, portanto, enchendo sem dúvida todos os vinhaenses de orgulho.
Mas, porque vestir psicologicamente uma personagem de, voltemos ao termo, “atrasada”, com a necessidade de a rotular com a origem em algum local específico – pelo apelido então, mais específico só se a pobre rapariga tivesse a infelicidade de ter no seu nome morada com bairro, rua, número de porta e código postal em Moás? Somar dois mais dois aqui não é difícil, e até os trasmontanos conseguiram fazê-lo imediatamente, suponho: para os criadores da série, basta ser-se trasmontano para se ser genuinamente “atrasado”. E ao contrário do que a TVI já veio a público suportar, o povo trasmontano até é muito bem-disposto e cheio de sentido de humor. Mas também é orgulhoso das suas origens e tradições, e isso já bule com outros mundos: a nossa liberdade acaba quando começa a dos outros, certo TVI?
Bom, mas voltemos ao dito clip. Em primeiro lugar, o poder da sugestão do sotaque falhou-me completamente: desde quando um sotaque reconhecidamente portuense, ou, sejamos rigorosos, do Entre Douro e Minho, tem alguma coisa a ver com o sotaque trasmontano?!
Lamento desfazer o tabu nacional, mas ao contrário do que os GNR sancionam na sua belíssima canção, não, não existe uma “Pronúncia do Norte”, nem pouco mais ou menos. Há uma pronúncia do Entre Douro e Minho, e há uma pronúncia de Trás-os-Montes e Alto Douro. Plain and simple. Aliás, a personagem – ou digamos melhor, a actriz – apenas tenta arranhar aqui e ali um sotaque portuense (minhoto-duriense), que se pretende passar por trasmontano, e nem nisso é muito feliz. A única alusão linguística genuinamente trasmontana – mas no fundo, esta sim nortenha – que consegui descortinar nos clips disponíveis foi um “vós ides”, que contrasta com o mais divulgado nacionalmente “vocês vão”. Mais nada, lamento dizê-lo, pois o sotaque trasmontano é um deleite de se ouvir.
A partir daí é uma pequena orgia de barbaridades: um avental para um look antiquado e desajustado, uma toilette que serviu para o Crisma para ir a uma noitada na Cosmópolis, a ausência de maquilhagem, o desconhecimento sobre o que é um mp3, uma emoção esmagadoramente trágico-dramática no primeiro encontro com o grande oceano Atlântico, o acorrer em socorro a um bêbado quando os demais viram costas (esta por acaso até me parece bem retratada, de facto), e sabe-se mais o que aí virá. Tudo com a chancela “Made in Trás-os-Montes”, que intencionalmente ou não acompanhará agora a personagem até ao fim da série.
A tentativa de estereotipar é de facto tão parolamente fraca, que quase nem me consigo sentir ofendido no orgulho trasmontano; quase. A alusão a Trás-os-Montes imbuída em tão triste desempenho é ofensiva, tanto pela torpeza do mesmo, como pela óbvia sugestão do “atraso” cultural e intelectual que será próprio de um trasmontano, no qual uma panóplia de indivíduos tem assinatura, desde quem criou a personagem até quem a encarna e a quem realiza e produz a série.
Mas esta é afinal uma boa oportunidade para convidar o elenco da série e toda a equipa que a torna possível a visitarem Trás-os-Montes, não pelo ecrã da televisão, mas pelos próprios pés, para lá do Marão, sentindo as palavras de Miguel Torga a soprarem nas penedias aquele “Entre!” tão trasmontano. Entrem, e terão pão e vinho na mesa. Entrem, e verão ao pé do LCD uma colecção de smartphones e um portátil ou uma tablet a carregar numa tomada; cheguem-se à frente ao chupão, aqueçam as mãos, oiçam as histórias de antanho dos mais velhos. Entrem, e poderão descansar a vista no Gerês, no Larouco, na Coroa, em Montesinho, no Alvão e no Marão, na Padrela, em Bornes e na Nogueira. Entrem e saciem a sede com uma Frize, uma água das Pedras Salgadas, ou uma Carvalhelhos. Entrem e curem o cansaço nas termas de Chaves ou no SPA de altitude de Bornes. Entrem e embebedem-se com a Porca de Murça, com um Douro ou com todos os Porto que a carta de vinhos da Região Demarcada do Douro tem para dar ao mundo. Entrem e deliciem-se com a posta mirandesa, a alheira e o azeite de Mirandela, o presunto de Chaves, o salpicão e a castanha de Vinhais, o folar de Valpaços, a cereja de Lamego, a azeitona duriense, o mel da Terra Fria, a truta da bacia do Tua. Elevem a alma com os Novos Contos da Montanha, deliciem-se com a língua mirandesa, sonhem com o timbre hipnotizante da gaita-de-foles trasmontana. Entrem e admirem a coragem que defendeu a República contra as invasões monárquicas em Chaves, Vinhais e Mirandela. Entrem e ouçam as histórias dos dois maiores heróis portugueses da Primeira Guerra Mundial, Carvalho Araújo e o Soldado Milhões, ou a de homens que ultrapassaram todos os medos do mundo ao dobrar o Bojador ou os confins da América do Sul e do Pacífico, como Diogo Cão e Fernão de Magalhães. Entrem e vejam o Dois de Miranda, as arribas ciclópicas do Douro Internacional, a Linha do Tua, as fisgas do Ermelo, a Senhora da Graça, o São Leonardo de Galafura, a Senhora dos Remédios de Lamego, a ponte do Imperador Trajano, a Pedra Bulideira, o Museu do Côa e o Douro Vinhateiro Patrimónios da Humanidade.
Enfim, entrem como e quando quiserem, e matem a desconcertante ignorância com que nos presentearam com a menina Moás.

Daniel Conde, cidadão trasmontano.
Cosmópolis, 12 de Setembro de 2013.

9 comentários:

mario carvalho disse...

Força Daniel

Representas a juventude que não quer romper as origens .. quer continuar com orgulho a saber quem é , de onde veio e o que quer para ele e para os transmontanos a sério..

abraço


a ti e a todos os orgulhosamente simples e sabedores

mario carvalho

Daniel Conde disse...

Obrigado Mário!

Como bem se diz na sabedoria popular, que não se sente não é filho de boa gente.

E eu sou filho de Trás-os-Montes.

Um abraço a todos os trasmontanos a sério;

DC

Unknown disse...

Obrigado Daniel. A história fala por nós, e os citadinos e corruptos deste país bem o sabem. Foram necessários 35 anos de Democracia, para termos uma autoestrada transmontana a A4, ainda por concluir com o túnel do Marão. E, se p´ra cá da Marão mandassem os que cá estão, há razões para mandar á merda quem nos governa.

Daniel Conde disse...

Obrigado Manuel Pinto, mas atenção: para cá do Marão manda muita gente... Não sei é se são dignos disso.

Ainda bem que fala da A4; quer um facto curioso? Bragança teve comboio apenas 50 anos depois de Lisboa. Bragança também só teve auto-estrada 50 anos depois de Lisboa.

Ahhhhh, o centralismo...

Luís Monteiro disse...

Parabéns pelo texto argumentativo. Dava um óptimo artigo de um bom jornal ou revista. Aproveitei alguns parágrafos para descortinar, junto de amigos, o mito do que é "Ser Transmontano". Está brutal! Este sangue novo que conhece o espaço transmontano contrasta com o cheiro a bafio dos políticos destas bandas que se arrastam, arrastando-nos. Enquanto território esquecido e abandonado, já demos muito ao país, mais do que o país nos deu a nós. Reinventemo-nos. Parabéns e obrigado pelo prazer de ler algo tão assertivo. Luís Monteiro, Ribalonga

Fernando Gouveia disse...

Vale a pena os trasmontanos mostrarem a sua indignação, quando a sua realidade, a sua forma de estar e de viver e o seu modo de falar são adulterados por um programa televisivo. E não me venham com tretas de que é o direito ao humor que está em causa. Não é! Os trasmontanos, como os lisboetas ou os portuenses podem ser objecto de tratamento pelo humor. E se fossem tratados dessa forma com profissionalismo e com verdade provavelmente não teríamos este movimento de repúdio pelo programa que está em causa. Eu não vi o vídeo, mas, a avaliar pela descrição que faz o Daniel Conde, é intolerável a desvirtuação que se faz da identidade trasmontana.
Alguns meninos de Lisboa que nunca viram plantar uma alface e, de História, apenas conhecem as das telenovelas, pretendem fazer humor fácil. Ora, o humor fácil é bacoco, porque fazer humor profissionalmente exige que se estude a sério o alvo a tratar.
Se acham que Trás-os-Montes e os seus habitantes são um bom assunto de humor, sigam o conselho do Daniel Conde, que toma o termo usado por Torga: Entrem...e já agora..procurem vir de olhos e mentes bem abertas, porque talvez tenham nuito que aprender.

mc disse...

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=2YP-jLJPL6s#t=90


Daniel Conde disse...

Obrigado a todos!

Luís Monteiro, permite-me copiar algumas palavras suas:

"Este sangue novo que conhece o espaço transmontano contrasta com o cheiro a bafio dos políticos destas bandas que se arrastam, arrastando-nos. Enquanto território esquecido e abandonado, já demos muito ao país, mais do que o país nos deu a nós. Reinventemo-nos."

Carago, eu não o diria melhor!

DC

Neyde Fernandes Ricciardi disse...

Daniel Conde, tenho orgulho de ser filha de dois trasmontanos, minha mãe de França, aldeia de Bragança, meu pai de Formil, Vinhais.
Nasci no Brasil e sempre tive orgulho de meus pais, dois exemplos.
Minha mãe sempre dizia: sou trasmontana, sou de Trás-os-Montes. Agora fazem tanta confusão e dizem traNsmontano. Até nos sites e páginas portuguesas.
Gostei muito de seu texto, defenda mesmo Trás-os-Montes, tão lindo e cheio de História. Um abraço