Aquela tarde, a Choca recolhera ao poleiro mais cedo do que o
costume. Atrás dela, lembrando doze novelitos de oiro a
mexerem-se como por milagre, os doze filhinhos tinham seguido
a mãe – e lá dentro, qual deles com mais dificuldade,
um a um tinham-se encarrapitado no velho cesto de palha onde faziam
a cama, aninhando-se, o melhor que puderam, debaixo da asa materna.
Eles mesmos tinham estranhado recolher tão cedo aquela
tarde, os pequenitos; – mas, cá fora, o rancho das outras
galinhas atribuía isso à doença da Choca,
porque a pobre, com o gogo, metia dó com tamanho sofrer!
Um pouco aterradas, tinham assistido havia três dias a essa
operação, que a Choca sofrera, e que certas delas,
na grei, sabiam muito dolorosa. A pena que lhe espetara no pescoço
a velha que cuidava delas fora o mesmo que nada – e se mal estava,
pior ficara, a pobre! Ainda a trazia, essa pena, mas quase seca
porque não purgava; e entretanto, sem bem lhe fazer, afligia-a
como se fosse um estigma tanto ou mais que a própria doença...
Por isso recolhera cedo, a Choca; deixando fora, pelo terreiro,
gozando ainda o seu resto de tarde, o rancho das companheiras.
Ai, eram bem felizes, essas! Pelo buraco do poleiro, sentia-as
agora cacarejar – e não tardaria que o milho do recolher,
que a velha, todas as tardes, trazia para elas no seu mandil,
alvoroçasse no prazer do costume, em que por via de um
grão, às vezes, havia entre todas rixas alegres,
o bando das companheiras...
Só ela, doente, quase já não sabia o que
era comer; e ainda essa tarde, morta de sede, invejara a gotinha
de água que um ou outro dos seus pintainhos, beberricando
na pia, deixava, depois de saciado, cair do biquinho como uma
pérola.
Mas nem comer nem beber, ela, que era muita a gosma, podia! E
pelo que tocava a cacarejar, nem o bastante para a ouvirem os
filhos, para os admoestar, para os dirigir – quanto mais para
uma dessas tiradas que outrora lhe haviam feito, ao romper da
manhã, a sua fama de cantadeira! Galos que ela apaixonara,
ciúmes em que fizera arder tantas rivais, ralhos, intrigas,
combates – como tudo isso ia longe, agora ! Nos bebedouros, ela
mesmo se namorara da sua figura esbelta, muitas vezes; e que o
não adivinhara na devoção dos galos, de tantos
que a tinham amado e que ao aclarar das manhãs, todos os
dias, lhe declaravam o seu amor dos poleiros à roda – adivinhara-o
na inveja das outras, esse prestígio mágico da sua
beleza...
Certo galo, sobretudo, agora já velho – e, como ela, agora também sem entusiasmos, dir-se-ia que o enfeitiçara;
e agora mesmo, vendo-a recolher cedo com a ninhada, esse velho
e trôpego apaixonado (mas belo, ainda assim, na sua justa
decrepitude) não tardara a recolher-se também. Subtil,
passara, sumira-se ao fundo na sombra densa; e erguendo um voo
pesado, sentira-o aninhar-se onde passava as noites, numa trave
a um canto do poleiro. Cansaço talvez da vida, talvez doença
também quem lhe dizia a ela, entretanto, que ele se não
recolhera por a ver recolher, por a ver doente, por um impulso
de compaixão, que era agora, talvez, como a agonia do seu
velho amor?!
Pelo que respeitava às companheiras, as da sua geração
eram já poucas; e essas, como ela própria, mais
saudosas da mocidade, do que lembradas; e quanto às novas,
muitas criara-as ela – e, sobretudo, não era já
dela que tinham ciúmes...
De resto, ela mesmo era boa companheira; e tirante algum fogacho
de génio por amor dos filhos, se tinha de os proteger ou
se lhos ofendiam, até no comedouro era moderada e no bebedouro;
– e muitos pintainhos doutras ninhadas queriam-lhe como se fosse
avó, e os frangos, uma vez por outra, ela própria,
de manhã, ensinava-os a cacarejar.
Ah, mas esse bom tempo ia passado! Já chocara a ninhada
com pouca saúde; e surpreendendo-se, às vezes, sem
paciência para aturar os filhos, ignorava se seria por isso,
se por a verem talvez doente, que eles mesmos, coitadinhos, pareciam
às vezes também doentes!
...Entretanto, eles tinham-se aninhado todos, o melhor que lhes
fora possível, debaixo da asa materna; – e embora muito
enferma, ela era feliz, ainda assim, por ter tão quentes
os seus pequeninos e agora, por certo, todos a dormir e talvez
sonhando...
À boca da noite, as galinhas todas haviam-se já
recolhido; e alguém, de fora, tapara com uma pedra o buraco
do poleiro. Esse alguém fora ainda vê-la um instante
enquanto as outras comiam, mas retirara-se muito triste; e agora,
na quase escuridão do poleiro, pouco a pouco se estabelecera
o silêncio, e por fim já se não via nada.
Decorria o tempo, mas dormir não podia, a Choca; e, opressa
da gosmeira tenaz, afligia-a, mais do que a doença, ora
a imobilidade a que se votava por amor dos seus pequeninos, ora
esses abalos irreprimíveis de todo o corpo, quando algum
acesso mais fone a sacudia.
Estava então muito doente, a Choca, e ia talvez morrer! E todavia ela fora toda a sua vida muito prestante, para merecer
à sorte um sofrimento daqueles; – e esse mesmo nome de
Choca, muito parecido, afinal, com uma alcunha, vinha-lhe das
muitas ninhadas que havia chocado, cada uma das quais e não
tinham conta! – lhe havia custado uma doença. Febre que
era mesmo lume, nessas três semanas de choco, tantas vezes
repetidas; e depois, nas convalescenças esses mil cuidados
com os seus pequeninos, para os alimentar, para os guardar, para
os ensinar...
Episódios, alguns tinha a sua biografia, e certos deles
muito heróicos; e aflições então não
tinham conta! Certo ovo de pata que ela chocara, deitara um monstro
cá para fora; e aquela vez que o viu entrar numa ribeira
tremendo por ele como por um filho, posto que lhe segredasse a
natureza que o não era –, a aflição ia-a
matando, com a ideia de que se lhe afogava! Depois, quando o viu
boiar, que alegria!
Outro se lhe afogara, de outra vez, mas esse era bem seu filho.
Descuido, fora-se a beber à pia e lá ficara; e ela,
entretida com os mais, quando deu pela falta e o procurou, e quando
o procurou e o achou morto, ia endoidecendo com a aflição!
Querelas com as vizinhas eram a toda a hora, se concorriam ao
que esgravatava, para ela e para os seus; – e agora, prestes talvez
a expirar, pesava-lhe na memória uma grande culpa: essa
bicada feroz com que matara um pintainho estranho, de uma vez
que o pobrezinho, que tinha a mãe também doente,
viera, humilde, debicar-lhe no peito à cata de um grão,
ali guardado, como num celeiro, para os que eram dela! Disso pediria
ela perdão a Deus; e isso mesmo, em verdade, não
fora por querer, e remira-o, pela vida adiante, com muita obra
de caridade.
De resto, cumprira na sua vida todos os seus deveres, e muitas
vezes, muitas, deixara de comer, inclusivamente, para que os seus
não tivessem fome. Se se lhe extraviavam, procurava-os
e aquele que uma vez não apareceu, mais a enfrenesiara,
para toda a vida, no ódio aos gatos, que tratara sempre,
desde esse dia, como inimigos – e disso não se arrependia.
Chuvadas que no campo havia apanhado, dir-se-ia até que
lhe sabiam bem, com os seus filhinhos abrigados debaixo das asas;
– e se eriçava as penas e arrastava as asas, à vista
de certos cães, viera-lhe isso do que ouvira de alguns,
que eram traiçoeiros e comilões – mas vivera em
paz com a maioria.
Em suma, para defender os seus filhinhos nunca fugira, nem mesmo
do homem, e a alguns se atirara com bico e unhas; – e pelo que
tocava às raposas, muitas a haviam conhecido, mas de longe...
Mas o que não melhorava, coitada, era a sua gosma!
Cansada já de sofrer, ainda por cima sentia-se pior, com
o frio da noite! Não tardariam os galos a cantar – e sentia
que o ronrom da gosma, e os acessos que tinha às vezes,
e que pareciam tosse, não tinham deixado pregar olho, lá
cima, ao companheiro... Má noite, também, para os
seus pequeninos; mas os inocentes, cansados e mal-comidos, ainda
bem que iludiam a fome com o sono que era fadiga...
Entretanto, pela noite velha, entrou com ela um tremor de frio.
A gosma sufocava-a; – e ela já sentia, um daqui, outro
dali, mexerem-se inquietos os seus pequeninos. Ainda não
luzia o buraco; mas lá fora, disseminados, ouviam-se já
cantar os galos. – «Que é da sua força? que
é da sua alegria, que já para ela não tinha
encantos, essa alvorada?...» – Coitada, o frio apertava com
ela; e uns debaixo duma asa, e outros doutra, alguns já
desabrigados, sentia os filhinhos tremerem com frio, muito inquietos,
na escuridão ainda cerrada...
– Ah, se ao menos o dia nascesse!
Mas eis que certas intermitências dos sentidos sobrevinham
à pobre Choca! Não dormia, decerto, aquilo não
era sono; mas a memória já se lhe apagava; esvaía-se-lhe
a luz do instinto; e daí a pouco já não sentia
nada. – Inerte instantes depois; e por fim (cantou agora o galo
no seu poleiro!) veio-lhe um espasmo e caiu na morte...
A esse tempo aclarara a manhã; – e sobre o corpo tépido
da mãe, que na própria morte ficara dócil,
enovelavam-se agora, piando, os pobres dos pintainhos!
Trindade Coelho, Os Meus Amores, Lisboa, 1891
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