A linguagem precisa de “esquecimento” para viver.
Embora esta minha afirmação pareça mui paradoxal, vou expôr
algumas meditações que me levaram àquela frase-síntese, aparentemente arrojada.
Antes de mais nada, advirta-se neste facto: se não fosse o
esquecimento do sentido das palavras, as línguas não se modificavam
semanticamente, e até não chegariam os termos para a expressão dos mil
cambiantes do pensamento.
Nos meus ouvidos está a bailar uma quadra popular que diz
assim:
Alentejo não tem sombra
Senão a que vem do céu.
Abrigue-se aqui, menina,
Debaixo do meu chapéu.
Qualquer português ouve isto, e acha naturalíssimas as
palavras empregadas: nenhuma delas ocorre com sentido difícil ou arrevesado.
A rapariga está ao sol. O galanteador, munido do seu
chapeirão de aba larga (ou abeiro, como se lhe chama no Alentejo), convida a
moça a “abrigar-se” do sol.
Ora, aqui está um “esquecimento etimológico”, verdadeiramente
contraditório, no qual ninguém hoje em Portugal, Espanha, França ou outro país
latino parece reparar.
O latim “apricari” significava - aquecer-se ao sol.
Ora, se “apricari” originou “abrigar”, parece haver
contradição em uma pessoa falar em “abrigar-se do sol” fugindo dele, pondo-se,
por exemplo, debaixo do chapéu.
Pois se “apricari” era precisamente “aquecer-se ao sol”, quem
se “abrigasse” procuraria o sol, e não o evitaria.
Era, mas não é.
Até nas aparentes contradições podemos sempre descobrir o fio
da lógica expressiva…
Na verdade, “apricari”, originador do português “abrigar”, do
francês “abrier” e “abriter”, do espanhol ”abrigar”, etc. do sentido de
“aquecer ao sol” passou naturalmente à aceção de - “pôr-se livre do frio”.
Depois, o desenvolvimento operou-se, pois não é só o frio que
incomoda: o próprio calor, a chuva, a neve, etc. podem também levar-nos à
proteção de um chapéu, de uma árvore, de um telheiro, de uma casa.
Se, pois, “apricari” era “fugir para o sol”, hoje “abrigar” pode ser… “fugir do sol”.
Vou agora referir um outro fenómeno que me parece digno de
atenção.
O lado mau ou desfavorável das palavras tem um sortilégio
especial, tem (como direi?) um poder de fixação bastante forte para tornar
olvidado o sentido favorável.
Pensemos na palavra
“parvo”.
“Parvus” em latim significava “pequeno”.
Não havia ofensa
nisto, e até podia o vocábulo expressar delicadeza, como quando se referia às
crianças.
“Parvulus” era o menino, a criancinha.
Ora, como as crianças são de espírito “inocente”,
“pequenino”, desta ideia se partiu para a de “pateta”, pois um adulto com
pensar de criança é um “idiota”. Assim nasceu o sentido de parvo=estólido,
néscio, tonto, etc.
Partamos, agora, desta frase - Não deixa de não ser. Ou seja
- É com certeza.
Mas agora digamos, mais convictamente ainda - Não pode deixar
de ser.
Esta afirmação chega bem para vincar a certeza. No entanto,
quando se chega à parte da frase em que surge o verbo “deixar”, a palavra “não”
já está esbatida ou esquecida.
E que faz o Povo? Como não está com minúcias de análise
lógica, atira-lhe com outro “não” de reforço e aí temos - Não pode deixar de não
ser.
Evidentemente, vista à lupa da gramática, “não pode deixar de
não ser” é igual a “pode deixar de ser”.
Mas para quem está a falar sem preocupações de análise, quero
dizer, quem se está esquecendo dos exatos valores significativos, atira com a
frase “não pode deixar de não ser”, não atentando na neutralização de um não
pelo outro não.
Penso que os casos que ilustrei chegam para prova da tese:
- A linguagem faz-se
com mil enganos dos homens, isto é, precisa de “esquecimento” para viver.
Carlos Fiúza
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