22 agosto 2013

Semântica e esquecimento: Carlos Fiúza



A linguagem precisa de “esquecimento” para viver.
Embora esta minha afirmação pareça mui paradoxal, vou expôr algumas meditações que me levaram àquela frase-síntese, aparentemente arrojada.
Antes de mais nada, advirta-se neste facto: se não fosse o esquecimento do sentido das palavras, as línguas não se modificavam semanticamente, e até não chegariam os termos para a expressão dos mil cambiantes do pensamento.

Nos meus ouvidos está a bailar uma quadra popular que diz assim:

Alentejo não tem sombra
Senão a que vem do céu.
Abrigue-se aqui, menina,
Debaixo do meu chapéu.

Qualquer português ouve isto, e acha naturalíssimas as palavras empregadas: nenhuma delas ocorre com sentido difícil ou arrevesado.
A rapariga está ao sol. O galanteador, munido do seu chapeirão de aba larga (ou abeiro, como se lhe chama no Alentejo), convida a moça a “abrigar-se” do sol.

Ora, aqui está um “esquecimento etimológico”, verdadeiramente contraditório, no qual ninguém hoje em Portugal, Espanha, França ou outro país latino parece reparar.

O latim “apricari” significava - aquecer-se ao sol.
Ora, se “apricari” originou “abrigar”, parece haver contradição em uma pessoa falar em “abrigar-se do sol” fugindo dele, pondo-se, por exemplo, debaixo do chapéu.
Pois se “apricari” era precisamente “aquecer-se ao sol”, quem se “abrigasse” procuraria o sol, e não o evitaria.
Era, mas não é.
Até nas aparentes contradições podemos sempre descobrir o fio da lógica expressiva…
Na verdade, “apricari”, originador do português “abrigar”, do francês “abrier” e “abriter”, do espanhol ”abrigar”, etc. do sentido de “aquecer ao sol” passou naturalmente à aceção de - “pôr-se livre do frio”.
Depois, o desenvolvimento operou-se, pois não é só o frio que incomoda: o próprio calor, a chuva, a neve, etc. podem também levar-nos à proteção de um chapéu, de uma árvore, de um telheiro, de uma casa.
Se, pois, “apricari” era “fugir para o sol”, hoje “abrigar” pode ser… “fugir do sol”.

Vou agora referir um outro fenómeno que me parece digno de atenção.
O lado mau ou desfavorável das palavras tem um sortilégio especial, tem (como direi?) um poder de fixação bastante forte para tornar olvidado o sentido favorável.
 Pensemos na palavra “parvo”.
“Parvus” em latim significava “pequeno”.
 Não havia ofensa nisto, e até podia o vocábulo expressar delicadeza, como quando se referia às crianças.
“Parvulus” era o menino, a criancinha.
Ora, como as crianças são de espírito “inocente”, “pequenino”, desta ideia se partiu para a de “pateta”, pois um adulto com pensar de criança é um “idiota”. Assim nasceu o sentido de parvo=estólido, néscio, tonto, etc.

Partamos, agora, desta frase - Não deixa de não ser. Ou seja - É com certeza.
Mas agora digamos, mais convictamente ainda - Não pode deixar de ser.
Esta afirmação chega bem para vincar a certeza. No entanto, quando se chega à parte da frase em que surge o verbo “deixar”, a palavra “não” já está esbatida ou esquecida.
E que faz o Povo? Como não está com minúcias de análise lógica, atira-lhe com outro “não” de reforço e aí temos - Não pode deixar de não ser.
Evidentemente, vista à lupa da gramática, “não pode deixar de não ser” é igual a “pode deixar de ser”.
Mas para quem está a falar sem preocupações de análise, quero dizer, quem se está esquecendo dos exatos valores significativos, atira com a frase “não pode deixar de não ser”, não atentando na neutralização de um não pelo outro não.

Penso que os casos que ilustrei chegam para prova da tese:
 - A linguagem faz-se com mil enganos dos homens, isto é, precisa de “esquecimento” para viver.


Carlos Fiúza

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