19 agosto 2013

Leituras de fim de verão: José Saramago

Carta para Josefa, minha avó

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.

Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.

José Saramago, in “Deste Mundo e do Outro

2 comentários:

Anónimo disse...


É isto que eu não entendo - mas a culpa não é tua!

Este surpreendente final de Saramago tem obrigado muitos dos seus leitores a questionarem-se:
- Afinal o que é que ele quis dizer?

Escrita em 1992, esta carta é manifestamente bela e enternecedora.

É, também, um excelente testemunho de uma época e de uma realidade, bem desconhecida para muitos dos nossos jovens.

Saramago, que tudo questionava, não “entenderia” como sua avó, tendo passado tanto, vivido tão pouco, aceitasse a sua vida como “natural” e bela.

Não “compreenderia” como os mais velhos tudo tinham suportado com tanta passividade, não questionando nunca (e se alguma vez o fizeram foi em surdina) o porquê da falta de oportunidades ao seu alcance, nomeadamente para a educação.

E no entanto, Saramago “sabia” (tinha-o sentido na pele)…
... “sabia” que tudo isso nada mais era do que o fruto da ditadura.

Saramago “sabia” que essa ditadura tinha “feito” as pessoas submissas, como que predestinadas a tudo aceitarem como desígnio divino.

Mas não para ele…
Ele, o rebelde, o insubmisso, não entenderia isso… nunca o poderia entender.
A passividade dos mais velhos, a aceitação da resignação “imposta”, ser-lhe-ia, sempre, “ncompreensível”.

E assim o seu “desabafo” para com Josefa, sua avó:

- É isto que eu não entendo - mas a culpa não é tua.

CF

PS. Parabéns pelo ciclo "Leituras de fim de verão", agora dedicado a outro "monstro" da nossa literatura.

Fernando Gouveia disse...

Que bela ideia esta de trazer para o blog textos exempkares de grandes autores!
Este texto do Saramago reflecte toda uma filosofia de vida, na qual o escritor colheu, como viria a escrever no discurso proferido na Academia Nobel, a inspiração primeira para criar as suas personagens literárias. Na primeira parte desse discurso, Saramago repetiu a frase atribuída a sua avó Josefa e fez a humilde confissão de que fora com seus avós, analfabetos e siumples, que aprendera o essencial da vida.
No seu percurso empírico, Saramago nunca traiu as suas origens e exaltou frequentemente, ao longo da sua obra, através de personagens exemplarmente buriladas, a dureza a que foram submetidas várias gerações de camponeses.
Concordo com a análise do Carlos. Saramago não entendia a passividade das gerações que se conformaram com a sociedade injusta que lhes fora imposta, mas, evidentemente, sabia que essa passividade só podia subsistir mantendo o povo analfabeto e arredado da informação.