Aconselhar a emenda de erros ou de maus costumes da expressão
falada e escrita é das mais ingratas tarefas.
Quase sempre ficam incompreendidos os intuitos do emendador,
tornado, uma vez ou outra, alvo de antipatia, senão até de ironias.
Mas, se não se apontam os erros deseducadores, só por mero
receio de impopularidade, cai-se noutro erro - o da incompreensão do dever de
aconselhar os que erram, entre os quais se encontram pessoas de boa vontade.
É a estas que dedico, amigamente, os meus reparos.
Venho aqui ocupar-me de alguns preciosismos.
1.º apontamento: “desejo-lhe um resto de noite
muito feliz”.
Pertence à linguagem da Rádio e da Televisão este
preciosismo, que já se está a introduzir imitativamente em alguns ambientes.
As saudações na Rádio e nas Televisões deviam fazer-se com
naturalidade, o que, infelizmente, nem sempre se verifica nos nossos
microfones.
Exemplo típico de tal falta de naturalidade é este:
“desejo-lhe um resto de noite muito feliz. Boa noite, muito boa noite”.
Nunca se ouviu no Planeta a referência aos “restos de noite”. A qualquer hora da
noite, a despedida era boa(s) noite(s), noite feliz, etc.
Agora a Rádio e a Televisão criaram o “resto da noite”.
Era melhor acrescentarem - “contente-se com o resto! E está
com sorte. É o que há. Aproveite”.
Indago: Porque é que se diz um “resto de noite”? Ninguém, ao
falar naturalmente, diz “resto de noite”, “resto de tarde”, “resto de dia”.
Quando nos encontramos ou quando nos afastamos, seja ao princípio do dia, da
tarde ou da noite, o que dizemos é - bons dias ou bom dia; boa(s) tarde(s);
boa(s) noite(s).
Jamais se fala em restos…
Pense-se no preciosismo desse resto, e ver-se-á que tal fórmula deve ser deitada às urtigas.
Eu não ouço nas estações de outros países coisas dessas, de
verdadeiro jeito forçado. Porque será?
Sempre me delicio com a naturalidade dos “announcers”
ingleses:
“Goodbye. Till tomorrow”.
Se na nossa Rádio se dissesse - “Adeus, até amanhã”… era o
bom e o bonito!
2.º apontamento: “os nossos melhores agradecimentos”.
A afetação cerimoniosa fez nascer esta fórmula, “os nossos
melhores agradecimentos”, tornada em estribilho melífluo, muito do gosto do
conselheiro Acácio.
Evidentemente, o agradecimento pode ser bem ou mal sentido,
bem ou mal feito, e é humanamente compreensível
a atribuição de graus qualificativos a tal sentimento.
Mas o que aqui se requer é que se acabe com o chavão, com a
frase feita.
Sim, um jeito muito acacial é este assim: “Os nossos melhores
agradecimentos”.
Acácio não diz - Obrigado, muito obrigado; agradecido, muito
agradecido; sinceros agradecimentos; bem haja(m); etc.
A índole da nossa língua na graduação qualificativa e
quantitativa de agradecimentos dispõe, assim, de variados recursos
dispensadores do acacianismo referido. Esses recursos, porém, não servem, por
que são português velho e relho.
Além dos acima referidos, temos - muitíssimo obrigado;
profundamente agradecido, muitos agradecimentos.
3.º apontamento: o preciosismo de se proferir ministro
com um i, na primeira sílaba, muito
agudo, irritantemente agudo.
Já uma vez falei das pessoas que vão contra o uso geral do
falar, e têm sumo gosto em singularidades de pronúncia.
Repare-se, porém, nisto: a vulgar dissimilação do i em ministro, vizinho e semelhantes
vocábulos é fenómeno mais velho do que os quase nove séculos de Portugal. E
quem percorrer as páginas de autores antigos encontra grafado - “vezinho”, etc.
Não quer isto dizer que os que pertençam a regiões onde fique
natural a manutenção dos ii sejam
obrigados à dissimilação. Apenas o que se torna especioso é, sob color de
sonoridade, cair-se no mau gosto de ajanotar a fala.
Se esta dissimilação da vogal átona, por efeito da força da
tónica, se opera naturalmente há séculos, na sequência dos ii, para que se há de cair no preciosismo de forçar a pronúncia de
ministro, vizinho, etc., em vez de se proferir - menistro, vezinho, etc.?
4.º apontamento: Está-me a ocorrer um outro preciosismo deveras cómico.
E está-me a ocorrer, porque se ouvem constantemente uns
sujeitos bem falantes a repetirem a palavra coragem, mas proferida assim - córágem…
Eu não sei se eles dizem - córação, córdial, récôrdação,
acórdar, mas lá que dizem a - córagem, isso dizem!
Abro o livro “Problemas da Língua e do Estilo” (Vasco Botelho
de Amaral) e leio:
“Há quem profira “córagem” em vez de “curagem”.
Ora, essa pronúncia só convém ao ato de “corar”.”
“A forma coragem, no sentido de ânimo, deve ler-se “curagem”.
Julgam alguns inocentes que, vindo a palavra de “cor”, “cordis” (por meio de
“coraticu-“, o “o” de “cor” aconselha a abertura do “o” de coragem. Engano.
Vejam coração (víscera), que todos lemos diferentemente de còração (ato de
còrar)”.
Aliás, não temos nós a palavra recuar? Queiram aqueles que
dizem, eufemisticamente, “córagem” fazer o obséquio de decomporem a palavra
recuar nos seus elementos… (re + … + ar).
5.º apontamento: já agora a respeito da pronúncia.
Há pessoas que exageram a valorização sónica, pondo-se a
procurar uma pronúncia especial, difícil, arrevesada.
Dizem, por exemplo, contra a tendência geral, “o interésse”.
Qual é a prosódia devida?
Seria bom que se guardasse o “interésse” apenas para a forma
verbal - que lhe interésse, etc.
O 6.º apontamento pode ser este a respeito de “obcéquio”.
“O senhor faz o “obcéquio”?
A pronúncia natural, há séculos, é “obséquio”.
Gosto sempre de provar ou documentar aquilo que afirmo.
Portanto, ao afirmar que há séculos a pronúncia natural é “obzéquio”, e não
“obcéquio”, remeto para o livro n.º 1 de Estudos
Críticos de Língua Portuguesa, onde se afirma que em documento de 1742 já
aparecia a forma “obzéquio”, escrita com z. Isto prova que a pronúncia de s sonoro não é recente. Tem, pelo
menos, dois séculos e muito…
7.º apontamento: Para que se não julgue que só na prosódia há preciosismos, citarei
agora esta mania relativamente moderna de se dizer “molde”, em vez de “maneira, modo, forma, jeito, arte, sorte, etc.”.
Antigamente dizia-se - de maneira que, de modo que, de forma
que, de jeito que, de arte que, de sorte que. Hoje, sem razão nenhuma (a não
ser razão de preciosismo), por tudo e por nada, recorre-se a este meneio
arrevesado - “de molde a…”.
Há tempos pus-me a escutar uma agradável palestra. Estava
encantado com a maneira naturalíssima de quem falava.
Às duas por três, o estilo natural caiu em acacianismo. “De
molde a…”
Qual “de molde a”, nem qual carapuça!
De modo que, de maneira que, de forma que, de molde para (se
se quiser o molde próprio do
conselheiro Acácio) é que é sintaxe portuguesa.
De molde a, de maneira a, de modo a, de forma a - isso é
estilo ridículo ou de novo rico semianalfabeto.
8.º apontamento: o preciosismo do “perdão”.
Repete-se até à náusea… o perdão. Mas a forma portuguesa -
“peço desculpa” tem a seu favor a naturalidade, o comedimento.
Não significa isto um conselho para deixar de usar-se o
“perdão”, “forma de civilidade para pedir desculpa”, como já dizia o Dicionário de Aulete. Apenas se roga
que o pedido de “perdão”, com toda a grandeza ou até a sublimidade do
arrependimento, não venha a cair em fórmula de artificiosa delicadeza.
Porque o que se presenceia por vezes é esta cena: um sujeito
dá um encontrão noutro, pede-lhe secamente “perdão!”, e segue seu caminha, não
ligando ao protesto indignado da vítima.
Parece mais humana, mais social aquela comedida fala do povo
rude:
“- Ah! Desculpe, mas
foi sem querer”.
“- Não faz mal. Vá com
Deus!”.
É assim que o Povo faz e mantem a Língua.
Carlos Fiúza
4 comentários:
O Dr. Carlos Fiúza há muito que nos habituou (felizmente) a prodigiosas análises gramaticais, sobretudo, no que concerne à Linguagem nas suas distintas vertentes:ortográfica, morfológica, sintagmática, fonológica, semântica, etc.
São autênticas lições de mestre, que todos recebemos com muito agrado e que enriquecem sobremaneira este nosso espaço do "pensar ansiães"!
Acabo de ler os oito apontamentos com que CF nos presenteia e, concordando, naturalmente, com todos eles, logo me apeteceu deixar aqui a minha opinião (humorística?) sobre dois ou três desses apontamentos (neste momento não tenho tempo para mais...).
Por exemplo, em relação ao 1º apontamento "desejo-lhe um resto de noite...", parece-me que o locutor se refere mais à programação do que à preocupação de o ouvinte passar (ou não) bem a noite. Assim, em vez de desejar um "resto de noite feliz", ele pretenderia dizer "um resto de programação...". (são bem conhecidas as "guerrinhas" das audiências...);
2º apontamento: aqui parece-me haver influência da tradicional correspondência comercial francesa, isto é, do "avec reconnaissance"; "nos remerciements" ou, em suma, do "agréer les sincères remerciements de quelqu'un...";
4º apontamento: esta engraçada "córágem" remete-me, de imediato, para o conhecido regionalismo madeirense, com aquela "mania" de abrirem demasiado as vogais "a" e "o", como o provam alguns dos célebres discursos do Alberto João Jardim, like this: "... é precisa muita córágem para enfrentar os "cubános" do contenante...";
7º apontamento: essa do "de molde a...", só por mera ignorãncia ou até jactância!... ;
8º apontamento: tal como no segundo, parece-me haver aí o galicismo do "pardon!...".
Um abraço.
HR
Mais um oportuno e justíssimo comentário do CF. Quem sabe sabe!
Poderia continuar por muitas páginas. Preciosidades como as que citou são moeda corrente na comunicação que se vai fazendo neste país.
Lembro-me de mais uma que me irrita particularmente: a utilização do verbo existir.
Deixou de haver o verbo haver. Agora tudo existe, pois já não há nada.
Meu Caro HR
Estou muito feliz pelo seu regresso.
Dada a sua ausência, já tinha perguntado ao nosso comum amigo JLM se ele sabia o que se passava.
Foi com tristeza que ele me disse que o meu Amigo estava (ou esteve) doente.
Feliz, pois, por o termos de novo entre nós (sobretudo os que pugnam pela nossa Língua).
Obrigado pelo seu comentário.
Um abraço amigo,
Carlos Fiúza
Meu Caros
Fernando Gouveia
Tem o meu Amigo razão em se irritar com a utilização do verbo existir por haver. Sabe que a mim também me irrita?
Saberá, quem utiliza o verbo existir por haver qual a diferença?
Haver pode empregar-se como auxiliar e com o significado de ter. Neste caso conjuga-se em todas as pessoas.
Todavia, como verbo principal, a significar existir, é impessoal, quer dizer, só se usa corretamente na terceira pessoa do singular, ainda que o nome seguinte esteja no plural.
Ainda que Camilo haja empregado o verbo erroneamente (“haviam lágrimas”, etc.) não se deve seguir semelhante prática.
Vai-se olvidando hoje, com prejuízo para a variedade estilística, a prática de usar o verbo haver em lugar de ter, quer como auxiliar quer como principal.
Se a verdade manda dizer que bem grandes estilistas caem por vezes em censuráveis repetições, mentira não é que se nota nas obras dos verdadeiros Mestres o cuidado de as impedir.
Notem-se estes passos:
“… a fortificação, em que se trabalhava havia dias… “ (Frei Luís de Sousa, Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires).
“… havia mais de trinta anos desde que seu cunhado, que estudava para padre, morrera ético” (Camilo, A Brasileira de Prazins).
Em tais exemplos, a expressão de circunstância temporal está com o verbo haver no pretérito, em correspondência com o tempo usado no verbo principal.
Modernamente, contra a índole da língua dos melhores escritores e do povo, com frequência se perde de vista o paralelismo das formas verbais, e redige-se: “há dias que se trabalhava”.
Que fazer, Caro FG?
“É a vida…”, como diria o nosso ex-PM Guterres!...
Hélder Rodrigues
Tenho o maior respeito pelas suas opiniões (pois de um entendido da matéria se trata).
Se bem que até possa ter alguma lógica, o seu raciocínio é bem humorado… mas não me convence!
Córágem, pois… enfrente os “cubános do contenante”.
Abraço para ambos
CF
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