10 maio 2011

FICÇÕES

FICÇÕES


A década de sessenta tinha acabado de arrumar a de cinquenta há uns quinze dias. A vila tinha acordado com chuvadas fortes e persistentes, a rasgarem facilmente a fina neblina que se erguia das águas do Tua.
Laura, a professora, haveria de desembocar a qualquer momento na rua da República, junto ao parque, vinda do toural, com o rapazito preso por uma mão, ambos a toque de caixa, pois o sino da igreja não tardaria a bater as oito da matina e o comboio partia sempre às oito e um quarto.
A outra mão da professora trazia um saco de lona contendo duas marmitas de alumínio e um carolo de pão e, por isso, se tornava mais difícil a corrida contra os tempos, o do relógio e o do temporal que se abatia cruelmente sobre aquelas duas frágeis figuras.
Em chegando à passagem de nível, já fechada ao trânsito, atalhavam pela linha em direção à gare, pois já não havia tempo para ir à volta e entrar condignamente pela porta da estação de Mirandela.
Àquela hora da manhã, a estação abarrotava de passageiros, acompanhantes e mercadorias. É que, praticamente ao mesmo tempo, cruzavam-se ali dois comboios, o que vinha do Tua para Bragança e o do percurso inverso. A jovem professora e o filho entravam neste todas as manhãs e às vezes nem arranjavam lugar para se sentarem, com a enchente que já vinha de Bragança e de Macedo de Cavaleiros.
Naquele dia quinze de Janeiro, uma segunda-feira de muita água, a professora e o filho lograram sentar-se no banco almofadado e verde da automotora das oito e um quarto. Estavam ambos como pitos, molhados da cabeça aos pés. O garoto, sete anitos acabados de fazer, frequentava o seu primeiro ano de escola com a própria mãe, servindo-lhe também de companhia durante a semana de aulas na escola de Barcel. Regressavam às sextas, já no fim do dia, para de novo voltarem às segundas.
A aldeia de Barcel, cravada na encosta de um monte, na margem direita do Tua, não tinha estação de comboio. As estações que havia, eram as de Vilarinho e da Ribeirinha mas na margem esquerda.
Se o tempo estivesse de feição, dava para tirar o bilhete para Vilarinho e ir a penantes, passando a ponte e percorrendo depois cerca de uma légua, subindo e descendo e subindo.
No Inverno, geralmente, tirava-se o bilhete para a Ribeirinha, quase em frente a Barcel e depois era só atravessar o rio de barco. Mas a professora tivera um fim de semana arrasador e ainda se sentia cansada. E como não lhe apetecia andar nem um metro a pé, naquele dia tirou o bilhete para a Ribeirinha.
Quando se apearam da motora, a chuva tinha acalmado e era agora uma morrinha fria que rompia do nevoeiro ali instalado e que fazia tiritar de frio os dois únicos passageiros daquela pequena estação.
O chefe, fardado a rigor, do alto do seu chapéu redondamente branco, condoeu-se daquela aparição matinal e quis que entrassem no espaço do edifício ocupado para sua residência, para se aquecerem na lareira da cozinha.
- Ó senhora professora, é só um bocadinho para secarem ao menos a roupa, enquanto chamo o barqueiro.
A professora olhou para o relógio da gare e o ponteiro dos minutos estava mesmo ao chegar ao número dez romano. Já não havia tempo. A entrada era às nove em ponto e não se podia facilitar. Bô era! Vamos que aparecia o senhor inspetor! Credo! A senhora arrepiou-se, não sabendo se de pensar no senhor inspetor ou do frio de rachar que mordia, a coberto do nevoeiro cada vez mais denso.
Apertou a mão da criança numa mão e com a outra, segurou melhor o almoço que descansava nas marmitas de alumínio escondidas no saco de lona. Atravessaram a linha e logo após um pequeno carreiro a descer, corriam as águas agora turvas e mais ruidosas, da cheia que estava a acontecer. A professora assustou-se com a súbita e agressiva aparição ali a seus pés. Recuou, puxando o filho para trás. Olhou de soslaio para o relógio da estação. Ali estava o ângulo reto dos ponteiros, prestes a marcarem as exigentes nove horas! E se o senhor inspetor…
A professora, decidida a cumprir escrupulosamente o seu horário, ergueu a cabeça para a outra margem que não se via e rasgou o nevoeiro com o seu grito de revolta: ó barqueiro! Ó barqueiro! Mas nem o barqueiro nem o nevoeiro responderam à aflição do chamamento. O que se ouvia era o rumor cada vez mais forte da corrente a enfurecer-se.
Decorreram largos minutos que pareciam horas à desolada professora. O filho tremia cada vez mais e já choramingava agarrado à mãe.
Até que o nevoeiro condescendeu, volatizou-se um pouco e deixou entrever um barquito com um homem velho, de pé, inclinado sobre um pau comprido e esguio (vareiro) que segurava com as duas mãos, erguendo-o e mergulhando-o, para fazer deslizar o barco sobre as ruidosas e lamacentas águas. Mal encostou à margem, praguejou “a senhora num bê como bai o rio?” A professora respondeu-lhe com um pacificador “Deus o abençoe!” e lá entraram para o frágil barquito de madeira.
As águas turvas pareciam querer entrar a qualquer momento. A corrente era fortíssima e rapidamente deslizaram para o meio do leito. O velho transpirava e praguejava ainda mais, num esforço titânico para fazer obedecer o barco ao vareiro que subia e descia às profundezas do rio, num ritmo cada vez mais forte. Mãe e filho agarravam-se com força, aterrorizados e indefesos. Travava-se ali uma luta terrível e tripartida, entre o velho, o barco e as águas enfurecidas. O nevoeiro, entretanto, resolvera regressar, como que querendo ser testemunha privilegiada e única da luta de morte que ali acontecia.
Como a professora já demorava, os alunos foram descendo do povoado ao rio, para ver se ela vinha de barco. Uma a uma, as crianças iam-se juntando na margem direita e chamavam pela professora, pois apenas ouviam os barulhos difusos da corrente e do vareiro roçando no barco de madeira, enquanto subia e descia aflitivamente às mãos do velho barqueiro. “Estou aqui, meus filhos”, ouviram a certa altura as crianças.
Vislumbrava-se agora a ramagem das árvores que tombavam sobre as águas junto à margem. A distância a vencer não era grande. Mais um esforço do barqueiro-herói e já se podiam abraçar todos.
Como estavam relativamente perto, as crianças conseguiam ver agora o que se passava no rio. Estavam elas aos pulos, de contentes, quando repararam num enorme tronco que deslizava rápida e perigosamente, impelido pela forte corrente das águas, até que embateu em cheio no pequeno barco de madeira que ficou em fanicos. Os três corpos desapareceram num ápice, engolidas pela fúria da corrente e nunca mais se viram. As crianças começaram a berrar e a fugir em direção à aldeia.
Juntou-se logo o povo, correndo em direção ao local da tragédia.
Já tocava o sino da igreja a rebate, quando alguns conseguiram vislumbrar o pequeno saco de lona com o almoço da professora e do filho, preso num ramo junto à margem.


Hélder Rodrigues

14 comentários:

Anónimo disse...

"Figuras de sintaxe"

Em relação ao conto de Hélder Rodrigues, convém notar que certas construções da frase "podem" parecer, ao fazer-se-lhes superficial análise, enfermiças de solecismo.

Com efeito, há quem se esqueça de que, a par da chamada sintaxe gramatical, existe a sintaxe figurada, segundo a qual se permitam algumas alterações ou liberdade na construção dos elementos do discurso.

Assim, por exemplo, na frase seguinte de Herculano, feita a divisão das orações, a expressão inicial “a construção da agonia”, como que ficou isolada: “A construção da agonia/que neste momento passou nas faces do cavaleiro negro/estendendo para o céu os punhos cerrados/não haveria aí palavras humanas/que a pintassem” (Cf. Eurico, O Presbítero):

Explica-se, afinal, esta redação semelhante a muitíssimas outras correntes na melhor prosa, por aquela figura denominada “anacolutia”, que consiste em antepor a uma oração, sem ligação gramatical, a palavra ou palavras acerca das quais, mais adiante, se faz alguma afirmação.

Este conto de Hélder Rodrigues é “imaginoso”, tem textura e boa sintaxe... “rasgando o nevoeiro com o seu grito de revolta”!

Não é de perceção fácil, porém, a adivinhação do desfecho…

… no entanto a sua “anacolutia” lá estava, implícita.

Os meus parabéns,
Carlos Fiúza

Anónimo disse...

Caríssimo Carlos Fiúza,

como se vê, agora deu-me para escancarar a minha "gaveta" à rua! Isto é, ao público-leitor. A verdade, é que para além de eu ir comentando a excelente prosa dos comentários de C.F., JLM, JAM ou mesmo LVS (como lamento, sinceramente, que VAV se mantenha "mudo e quedo"...) não sei bem como colaborar neste espaço sem cair em "tretas" estéreis (redundância, não é?) que não interessam a ninguém. Assim, se me colocar na posição de autor, sempre vou tendo o privilégio de receber o eco (bondosas análises) de leitores e analistas categorizados como Carlos Fiúza, por exemplo. Bem haja, pois, mais uma vez, pelas suas palavras elogiosas. Entretanto, fiquei muito contente por não ter encontrado qualquer solecismo. Já quanto aos anacolutos, eles são praticamente inevitáveis na minha prosa...
Permita-me um abraço de gratidão.
h.r.

Anónimo disse...

Este texto,como o do Agripino ou o do Aragão,constitui o que,para mim, de melhor faz HR. Ao dizer isto,não estou a bajulá-lo porque esta minha apreciação é por mim sentida.Neste tipo de textos,HR convence-me e leio-os com agrado.Como lhe reconheço,pelo menos aqui,apreciável mérito,faço todos os esforços porque,noutros assuntos,tenhamos um contraditório com algum interesse.
Não existe tanta gente capaz de escrever bem que nos possamos dar ao luxo de recusar o reconhecimento do mérito que eu vejo aqui.
JLM

Anónimo disse...

No meu comentário há um "porque" que é "por que".
As minhas desculpas.
JLM

Anónimo disse...

Quando um leitor afirma publicamente que leu ou lê com agrado este ou aquele autor, não há nada de mais bonito e encorajador para este. É para isso que se cria, que se ficciona, que alguém arranca da alma o que de melhor tem (ou julga ter) e o entrega ao mundo, assim, de mãos abertas, para que o "julguem". E o "julgamento", neste caso, de C.F. e de LVS, não pode ser mais animador para que eu continue nesta dádiva momentânea daquilo que um dia poderá constituir mais um livrinho de contos. Quanto ao contraditório, amigo LVS, olhe que entre nós os dois, ele não existe assim tanto como v. pensa. Algumas vezes recorre-se a pequenos "truques" para animar e/ou prolongar um tema mais interessante ou palpitante...
Mas, concretamente, quanto às vossas recentes apreciações literárias, são escassas as palavras de agradecimento, comparadas com as que gostaria de aqui vos deixar. Felizmente que temos uma palavra só para resolver isso: OBRIGADO.

h.r.

Anónimo disse...

Caro “h.r.” [H.R.] - (??),

Perante o seu último comentário colocado neste prestigiado meio de comunicação, verifico que revela algum descontentamento em relação ao meu silêncio acerca da sua prosa. Apesar desta forma ser a razão mais sublime do nosso pensamento, creia-me, mas, não é isso, meu caro. Tenho andado sobrecarregado. Além disso, a ficção, para mim, não é uma das componentes do nosso alfobre literário e da nossa corrente linguística que desperte a atenção que, estou certo, nos deve merecer. Assim, o importante não é esse fragmento literário, mas sim, o pensamento que ele nos revela através da acção da palavra. Daí que, confesso, a sua ficção é, na verdade, possuidora de uma imaginação substancial. Mais: é uma ficção que não é de percepção fácil. Neste contexto, como nos diz, Carlos Fiúza, os anacolutos estão presentes, porquanto a construção elíptica não tem ligação sintáctica. Por fim, não se encontram solecismo, o que é muito bom, diga-se! Porém, gostei mais pela imaginação e pelo conteúdo, em detrimento da construção do léxico e da sua semântica. Parabéns!

Entretanto, como nota final, dado tratar-se de uma doutrina imaginativa de carácter personalista, lamento, mas creia-me sinceramente, não fazer parte da minha forma de ser, pensar e agir; tecendo comentários e/ou apreciações substanciais inerentes ao mundo imaginativo de outrem.

Respeitosos cumprimentos

LVS

Anónimo disse...

Caríssimo “H.R.”,

“Truques”(??) Niente, niente, niente!... Impressão vossa ou, outra forma de educação através do “Olhar”? Era bom que se explicasse, se assim o entender.

Como julgo ser do v. conhecimento, o olhar possibilita revelações e ocultamentos. Além disso, pode visualizar indignações e alumbramentos. Daí que, é uma parte do objecto que está ligado à contemplação. Mais: a revelação do pensamento ocorre através da leitura do olhar. O objecto visitado pelo olhar é revisitado pelo pensamento.

Assim, de acordo com a acção implícita do verbo olhar, transformamos a realidade em efeitos da expressão poética. O comportamento ocular é a forma mais sublime da linguagem física e também a mais expressiva de todas. Entre os sentidos, a visão é a mais plena, quando complementada pelo sentido interior da imaginação. Por isso, o olhar é ao mesmo tempo cognitivo e passional.

Neste contexto, a valorização do olhar como símbolo de reflexão representa um aspecto fundamental para a fruição, na apreensão do leitor, sem culminar numa leitura imediata. Com o amadurecimento dessa leitura é possível perceber, discernir e interpretar. As reflexões feitas sob um novo olhar modificam a visão do mundo. Quando se cria uma imagem do olhar, símbolo de forte polissemia, cuja imagem suscita significados, é possível ampliar a leitura em espaços diversos.

Por fim, como compreenderá, a leitura do olhar faz o leitor recuperar a essência da palavra, chamada desvelamento, isto é, esmerar-se, aliás, como é o seu caso. Ler é desvendar o mundo onde há tanto para se descobrir e encontrar. Não haverá nenhum sentido em realizar os encontros com a leitura, se não ocorrer a leitura do olhar. Um olhar crítico sobre as palavras, um olhar revelador da criação poética.

Respeitosos cumprimentos

LVS

Anónimo disse...

A T E N Ç Ã O

No pequeno texto de agradecimento que escrevi no "Dom. Mai 15, 10:53:00", onde se lê LVS, deve ler-se JLM. Por lapso (distração), troquei as iniciais identificativas dos prezados colaboradores/comentaristas. Pelo facto, apresento-lhes as minhas sinceras desculpas e os mais respeitosos cumprimentos.

h.r.

Anónimo disse...

Caríssimo “H.R.”,

Situação resolvida.

Respeitosos cumprimentos.

LVS

J.Pinto disse...

Bom texto, obrigado!

Anónimo disse...

Está bonita esta redacção do professor!

Anónimo disse...

Mas, que PROFESSOR?????

Anónimo disse...

Ele há cada um que até parecem dois!JAM e hr são aqui tratados de professores!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!Indague e não faça perguntas reveladoras.O sr ou sra,menino ou menina,se já é votante, deve ser dos que tem a sua cota na culpa de estarmos na crise em que estamos.De certo que não me engano em quem vai votar!!!!!!!!Pois olhe vote que a mim tanto me faz,a minha casa governo-a bem eu enquanto tiver braços e pernas e cabeça para pensar... Antigamente poucos tinham ordenado, e com um só vencimento houve quem formasse 4 e mais filhos, e todos vivíamos com algum ou sem nenhum, que ainda era maior habilidade!

Anónimo disse...

Se isto é assim, já "não há estrelas no céu". Paciência! Na data (e sempre) em que se comemora o "Dia Mundial da Criança", devia haver mais respeito pelo próximo. Desabafos destes (tipo: chaminé), são geradores de confusão. Mas, o melhor é "não ir por aí".