06 abril 2010

Casas, montes e gentes de haver música …

Peregrina do mundo desde que me reconheço
Olho sempre de novo, com esperança, de cada vez que regresso
esta nesga de terra árida e fértil onde,
viandante sem aguilhada nem caminho
em cada canto, em cada momento, renasço

Lá em cima, ao descer da estrada,
debruçada no muro que dá as boas vindas a quem entra,
janela escancarada de Marcel Duchamp,
experimento, como nos seus célebres ready made
o Douro e o Tua enleando-se, ao fundo, carinhosos, num abraço de pai e filho pródigo
reunidos no leito que os levará ao mar, rente à linha mil vezes afagada no sobe e desce sonoro do comboio
assim de longe vistos, cintilam como duas cobrinhas de água mansa,
girinos translúcidos, no tanque parado da infância, em parras fulvas e flores campestres

Olho atrás e arreceio-me dos céus cinzentos e das fragas altaneiras e esbeltas
Que serpenteiam as serranias do planalto engalanado de nevoeiro e arco íris

Saltitante o olhar desloca-se sorrateiro e manso como as ovelhas e as cabras no pasto
Até às antiquíssimas ameias do castelo ancião

E de tanto ver e imaginar passados, patrimónios e história
Divago pelas lonjuras dos nossos rasgados horizontes
Onde a abóbada celeste acende as estrelas que cintilam
Rés às nossas cabeças projectadas na lonjura do espaço cósmico

Retorno a casa, cansada de acções, rica de ideias e como Guerra Junqueiro peço
“Minha velha ama que me estás escutando
Canta-me cantigas de dormir, sonhar”
Inquieta na rasura dos dias que correm à desfilada, hoje, à nossa volta
Prolongo e renovo, à minha maneira, esse republicano poema transmontano
Sim, conta-me histórias e anseios de bem acordar…

Aconchegados nas labaredas da lareira, os sentimentos
abrem-se aos que de longe vêm “Entre quem é…”
E a hospitalidade, que o filósofo da diáspora dificilmente explica
instala-se presente e desnuda, a dentro de portas que nunca se fecham

Enquanto os sinos repicam, festivos, soando pelos campos de urzes, giestas e papoilas
sinfonia de cores na brisa quente e fresca, ondas de verde esperança ondulante

perambulo, como candeia acesa por atalhos e caminhos
Celtas, romanos, bárbaros, cristãos, empedrados e de macadame
Colhendo campainhas do monte, brancas e amarelas, silvas e amoras
As pernas me bailam lestas com abelhas, gafanhotos e lagartixas por entre muros e musgo, ao som rasante de andorinhas e cucos da carrasqueira
E vou tecendo meias, mantas e património que liga gerações

Regresso aos povoados ontem assim mesmo, hoje quase desertos
Ensombram-se-me os olhos com a falta dos risos e choros das crianças
E só então me dou conta: à volta, tanta coisa, mas gente, gente, nada.
Assalta-me o desânimo perante estes montes carecas e solitários desenhando o espaço
Que já vi fervilhando de gente e cultivados, kolkoses soviéticos sonhados em minha juventude
Porém…na verdade…todavia
não cabia então na generosidade do meu pensamento jovem
o poema da pedra do meu amado poeta brasileiro Drumond de Andrade
que, certeiro na ambiência de desânimo que nos mata, assim dizia:

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Porém, como eu dizia no início, e ao contrário do poeta,
não correm meus olhos o perigo da fadiga, de cada vez que aqui retorno
sozinha, ou bem acompanhada como aqui, hoje, sábado de aleluia,
sinto que a Fénix renasce e nas suas asas,
a crença de que sempre se pode tirar a pedra do meio do caminho.

No colectivo olhar ao fundo do túnel a alegria de uma luzinha que brilha.


Otília Lage
Casal de Tralhariz, Encontro de Carrazedenses e Colaterais, 3 de Abril de 2010

3 comentários:

Anónimo disse...

Um BELO TEXTO que só agora descobri, e que devia ser lido com atenção por todos quantos fazem da escrita uma actividade permanente. mj

Anónimo disse...

Confesso, sinceramente, que gostei bastante do texto, da sua mensagem e do conceito de "peregrina" com que a autora, além de se identificar, o consubstancia. Por sua vez, é de salientar também, o enfoque pedagógico do poema subordinado ao título: "No meio do caminho", publicado em 1928 na revista de Antropofagia, de Carlos Drummond de Andrade [CDA], poeta brasileiro nascido em Itabira, no ano de 1902 e falecido em 1987. Foi um poeta irreverente e polémico. Contudo, está associado ao que se fez de melhor na poesia brasileira graças à sua grandiosidade e qualidade da obra produzida. Neste caso, a Drª. Otília Lage [OL] foi feliz e oportuna pelo facto de ter inserido no seu texto, o poema referido já que, “no meio dos nossos caminhos”, na verdade, há, muitas pedras. Por isso, a “pedra” a que se refere CDA é muito polissémica e, talvez, muitas das nossas rochas transmontanas, tenham uma singularidade enorme em termos de familiaridade em relação à "pedra" focalizada pelo poeta. Assim sendo, além da riqueza do texto de OL, estou certo, foi bastante valorizado e enriquecido de uma forma literária e assertiva, graças ao encaixe do poema citado de CDA (e não só!). Por tudo isto, parabéns e bem-haja. Continuamos à espera de mais textos seus. Não se esqueça: mãos à obra! Os Carrazedenses precisam deles, como de pão para a boca!

Cumprimentos,

LVS

Anónimo disse...

... E três léguas a jusante, do alto mais alto da galafura, Torga, hirto com as mãos erguidas como troncos, acenando com a sua "Mensagem" solidária (in Libertação) para a nossa Otília Lage: "Vinde à terra do vinho, deuses novos!
Vinde, porque é de mosto
o sorriso dos deuses e dos povos
quando a verdade lhes deslumbra o rosto.

Houve Olimpos onde houve mar e montes.
Onde a flor da amargura deu perfume.
Onde a concha da mão tirou das fontes
uma frescura que sabia a lume (...)".

Parabéns Otília. Um poema destes corre sempre ao sabor das águas cristalinas sem qualquer pedra que lhe impeça o caminho...

h. r.