12 agosto 2007

TORGA

Bem sei que bebeste o vinho das taças de Unamuno e de Cervantes para lhes herdares o tal pseudónimo. Mas muito tempo antes, ainda eras um rapazito de socos e com remendos nas calças, quando te atiraram inopinadamente para o outro lado do nosso mar. Foi assim que o aguilhão da diáspora te ferrou e depressa quiseste voltar ao ninho do teu negrilho ("Sei um ninho", lembras-te?)... Ainda te acenaram com a sacristia, mas pássaro como tu, só para altos voos, pelos céus libertando as amarras do granítico chão que teimava em prender-te à terra. Depois, abrindo generosamente o peito ao mundo para o mundo melhor te conhecer, foste construindo, como uma comprida estrada, palmo a palmo, pedra a pedra, a famosa diarística, até ao derradeiro sopro da tua longa e rica vida de transmontano plantado de raízes. Pelo meio, ainda te cortaram as asas da liberdade (pensaram eles, coitados...) e fizeram-te morder a poalha maldita de umas grades de ferro (Aljube), mas depressa deste um biqueiro na gaiola e continuaste, vencedor, com o teu hino libertário a cantar Portugal e a alimentar esse teu Iberismo fecundo...
Partiste numa jovem madrugada de terça-feira, num bater silencioso de asas, subindo, subindo, até à eternidade. Não fora esse teu último voo nocturno e hoje serias um belo poema centenário de braços erguidos à vida!
Devo dizer-te (já nem me lembrava) que conheço a tua velha casa. Já subi ao teu negrilho do Eirô. E já derramei (em silêncio, sem ninguém ver) algumas lágrimas sobre a tua campa rasa, ali mesmo à entrada (um nadinha para a esquerda) da tua perpétua morada.
Tenho diante de mim tudo aquilo que escreveste e choraste e riste e (assim) quase não passa um dia em que eu te dê um aperto de mão, para me aguentar em certas alturas de...
Por isto e por muito mais, eu tinha de falar urgentemente contigo, hoje, no dia dos teus cem anos, para te agradecer a lavra da tua imensa arte, ou, simplesmente, para te dizer um adeus, até breve...
Entretanto, deixa-me oferecer-te, em jeito de homenagem, esta torga, Miguel, aquela planta dura de roer que tu quiseste plantar no quintal do teu desespero, que encerra a porta dos teus diários e que escreveste já com um pé na outra margem do teu Doiro:

"REQUIEM POR MIM"

Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
em vez de natureza consumada,
ruína humana.
Inválido do corpo
e tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
contra as leis do destino
e o destino não quis
que eu me cumprisse como porfiei,
e caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
desaguar,
e, em largo oceano, eternizar
o seu esplendor torrencial de rio.

(Miguel Torga)


Hélder Rodrigues

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