Os homens nem sempre são senhores do seu destino.
in Júlio César de Shakespeare.
Senhores? Nem do seu gosto... Ou da falta dele!
A propósito do lançamento nacional da colectânea POPlastik 1985-2005, dos Pop dell’ Arte, lembro que o 'génio' (2º o Público) de João Peste Guerreiro esteve para figurar em A Palavra é um vírus, num 4º número que nunca chegou a sair. Recordo que ao Conselho sem Redacção onde participaram Pedro Cordeiro, Rui Lopes, João Pedro, Joaquim Ribeiro, além de mim, chegou via Luís Freixo (audEo) o texto "A produção e a reprodução do gosto (e da falta de gosto) na música em Portugal", acta da conferência produzida pelo cantor, licenciado em Sociologia, ao ISCTE, em Fevereiro de 1999.
Passamos a citar alguns dos passos do documento:
‹‹(...) Nada para mim é mais importante na vida do que gostar e amar seja uma pessoa, uma obra de arte, uma ideia política ou mesmo científica. Ainda está por fazer a sociologia de 'amar'. Eu gosto de gostar de gostar. Mas porque é que eu gosto tanto de gostar de gostar? E porque é que gosto mais da música de Stockhausen do que da de Philip Glass? (...) Francamente não sei e só me ocorre responder a estas perguntas com uma outra pergunta: o que é gostar de gostar? Ou então simplesmente o que é gostar? Ou de uma forma ainda mais resumida — o que é o gosto?
O 'gosto' tanto na sua dimensão psicológica como na sua dimensão social deriva de um sistema complexo de inter-relações entre o indivíduo e o meio (...).
Para melhor compreender toda a complexa teia de relações entre o indivíduo e o meio, o mundo e a sociedade podemos recorrer ao conceito de 'habitus' criado pelo célebre sociólogo Pierre Bourdieu.
(...) voltando a Bourdieu, "o inconsciente não é senão o esquecimento da história que a própria história produz" o que significa que "em cada um de nós existe o homem de ontem que é predominante".
(...) temos de assumir que os nossos 'gostos' e 'faltas de gosto' se formam (...) nos nossos inconscientes e têm mais a ver com o dito 'homem de ontem' do que com o 'homem de hoje' (...).
Tenho que ser honesto para comigo mesmo e reconhecer que o facto de eu gostar de gostar dos primeiros discos dos Roxy Music, dos Velvet Underground e dos Sonic Youth, da intensidade dramática das vozes de Nina Simone, Jacques Brel e Scott Walker, das canções 'pop' de Marc Bolan, de Kate Bush e David Bowie, da inteligência dos 'ready-mades' de Marcel Duchamp, dos provocadores quadros de Salvador Dali, Jackson Pollock e Andy Wharol, dos absurdos dos filmes de Fellini, de Derek Jarman e Kusturica, da versatilidade dos papéis de Dustin Hoffman, Bette Davis e Marlon Brando, do charme encantador das roupas de Jean Paul Gautier e miss Grace Jones, da beleza extasiante de Rita Hayworth e de Brad Pitt, do nihilismo das peças de Samuel Beckett, da profundidade da escrita de José Saramago e Jorge Luis Borges, ou o encanto dos poemas de Walt Whitman e Cesário Verde nada tem a ver com um pretenso livre arbítrio intelectual e mesmo intelectual por parte da minha pessoa, mas com todo o passado que marca mais a minha personalidade e 'gostos' actuais do que o contexto presente no qual me integro (não totalmente pois a minha desintegração mesmo que parcial existe enquanto forma de resistência pessoal à referida integração).
Todos nós somos prisioneiros dos 'habitus' enclausurados nos nossos inconcientes (...).
Como diz o professor Paquete de Oliveira — numa entrevista que me concedeu em 1986 para o primeiro disco da Ama Romanta, o Divergências (...) "o fascismo das ditaduras culturais é aquele que à escala mundial e face ao desenvolvimento da tecno-cultura permite falar em hordas selvagens cada vez mais ignorantes e analfabetas. Se a opressão social foi uma das características dos fascismos dos anos 30 e 60, a opressão intelectual poderá ser a marca terrível do fascismo das novas elites" (...).
Assim, não será difícil compreender que o enorme fosso existente entre as elites com 'bom gosto' e as massas (Pimba!) com 'falta de gosto' são cada vez maiores, porque as assimetrias entre os 'habitus' dos indivíduos das diferentes classes e grupos sociais são também elas cada vez mais acentuadas.
Mas, como conclui Paquete de Oliveira, na referida entrevista, "é sempre possível fazer uma nova revolta dos escravos" (...). Possamos todos começar realmente a gostar de gostar de gostar.››
vitorino almeida ventura, n1 (quase) absoluta citação de joão peste
Post Scriptum: Espero que os puristas não caiam em cima do João Peste, lembrando (a falta de gosto de) um playback de My funny Ana Lana, no Big Show Sic, programa ao extremo oposto do grupo Pop Dell´Arte, com o João Baião a dançar à sua volta, vestido de Ali Babá...
— As coisas chegavam muito floreadas à província, diz à distância Adolfo Luxúria Canibal. E JP Simões, que tocou em Sex Symbol, álbum de 1985: — As pessoas que conhecem João Peste sabem que ele aprecia esse lado de escândalo, aprecia ser um objecto de culto, um objecto de arte.
A mim, pessoalmente, não me chocou o mosh no programa de Baião, até achei piada ao semear o caos e a destruição... por entre as luzes e o lixo. O que me desinteressou foi o desfile final, sob a bandeira anti-homofobia, com a Mila Ferreira em cima dele-Peste, a beliscar-lhe o traseiro... (Que essas são também as memórias que Peste cultivou ao Público).
A colocar, no entanto, haveria bem mais interrogações à participação da banda num programa da Rita Ferro (Rodrigues), em que o convidado era David Fonseca, uma vez que eles chegaram pela mão deste, para que o ex-Silence Four demonstrasse uma estratégia de marquetingue não-comercial... Lembro que a música em playback era "O amor é um gajo estranho" e a Rita Ferro, toda-enjoadinha... Vincando que fora o David, não ela quem os convidara.
Para mim, a importância do Peste é a de saber cruzar várias línguas: italiano, francês, inglês, português... numa mesma canção,
onde a linguagem vai livre.
4 comentários:
ufa...suspirei depois de ler esta...
ÓH Mesquita...isto tá puxado!!
É preciso sincronia cultural para entender estas coisas...
Este bog está inadvertidamente a peneirar bloguistas...A qualidade melhora...mas reduz a farinha.
...mas digo-te uma coisa...("TRIGO LIMPO FARINHA AMPARO", de... "RAINHA")
brilhante.
O texto é do Vitorino Almeida Ventura.
Ó sr. "Zaratustra", peço desculpa, mas ... SINCRONIA CULTURAL?!!! isso só para rir. Não pretenderia dizer antes "SINTONIA"? É que sincronia, por oposição a diacronia, é mais vulgar e correcto uitlizar-se em Letras: (História, Filosofia, Literatura...). Mas está bem; o que importa é participar, não é?
cumprimentos
mota rita amarelo.
olá aos 3.
eu sei que o texto é uma adaptação J Peste do W. aliaz, está implicito. Não fui eu que disse q o texto era do Vitorino...foi o modereador Mesquita.
...as minhas palavras, essas sim, foram dirigidas ao Mesquita.
peneirar...para mim é melhorar...liberto de tormentos preconceitos.
eu adoro ler W.
contudo acho...perdoem.me...uma leitura não acessivel ...infelizmente...aos alguns leitores
..nomeadamente aos mais novos....daí a "sinCRONIA"...
um abraço...é um prazer.
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