24 junho 2005

PORTUGAL NÃO SE RESPEITA

"Parece que Álvaro Cunhal foi uma figura “importante”, “central”, “ímpar” do século XX português. Muito bem. Estaline não foi uma figura “importante”, “central”, “ímpar” do século XX?
Parece que Álvaro Cunhal foi “determinante” e “coerente”. Hitler não foi?
Parece que Álvaro Cunhal era “desinteressado”, “dedicado” e “espartano”. Salazar não era?
Parece que Álvaro Cunhal era “inteligente”. Hitler e Salazar não eram?
Parece que Álvaro Cunhal sofreu a prisão e o exílio. Lenine e Estaline não sofreram?
As virtudes pessoais de Álvaro Cunhal não estão em causa, como não estão as de Hitler, de Estaline, de Lenine ou de Salazar. O que está em causa é o uso que ele fez dessas virtudes, nomeadamente o de promover e defender a vida inteira um regime abjecto e assassino. Álvaro Cunhal nunca por um instante estremeceu com os 20 milhões de mortos, que apuradamente custou o comunismo soviético, nem com a escravidão e o genocídio dos povos do império, nem sequer com a miséria indesculpável e visível do “sol da terra”. Para ele, o “ideal”, a religião leninista e estalinista, justificava tudo.
Dizem também que o “grande resistente” Álvaro Cunhal contribuiu decisivamente para o “25 de Abril” e a democracia portuguesa. Pese embora á tradição romântica da oposição, a resistência comunista, como a outra, em nada contribuiu para o fim da ditadura. A ditadura morreu em parte por si própria e em parte por efeito directo da guerra de África. Em França, a descolonização trouxe De Gaulle; aqui, desgraçadamente, o MFA.
Só depois, como é clássico, Álvaro Cunhal aproveitou o vácuo do poder para a “sua” revolução. Com isso, ia provocando uma guerra civil e arrasou a economia (o que ainda hoje nos custa caro). Por causa do PREC, o país perdeu, pelo menos, 15 anos. Nenhum democrata lhe tem de agradecer coisa nenhuma.


Toda a gente sabe, ou devia saber, isto. O extraordinário é que as televisões tratassem a morte de Cunhal como a de um benemérito da pátria. E o impensável é que o Sr. Presidente da República, o Sr Presidente da Assembleia da República, o Sr. primeiro-ministro e dezenas de “notáveis” resolvessem homenagear Cunhal, em nome do Estado democrático, que ele sempre odiou e sempre esforçou por destruir e perverter. A originalidade indígena, desta vez, passou os limites da decência. Obviamente, Portugal não se respeita."


Vasco Pulido Valente
In Jornal Público de 17/06/2005

2 comentários:

Anónimo disse...

Para quando FOTOGRAFIAS da Sr. Ribeira, Quinta do Ministro, Coalheira, Vinhais, Fonte Santa, Comparado, Bartol, Canais, Coleja e suas gentes.
Para quando?? Obrigado mas Publiquem aqui no Estrangeiro sentimos falta.

josé alegre mesquita disse...

"Levou Álvaro Cunhal, a quem tenho dedicado muito do meu tempo, sobre o qual escrevi já mais mil e quinhentas páginas e me preparo para acrescentar muitas mais. Tinha estado a escrever sobre ele, na hora em que morreu, sem saber que morria. Terminava o capítulo em que descrevia a sua chegada a Peniche em 1956, após o longo isolamento da Penitenciária, e o misto de sentimentos entre quem começava a perceber que não iria ser tão cedo (ou em qualquer dia) libertado, embora já tivesse cumprido a pena a que fora condenado, e a alegria de reencontrar os seus camaradas mesmo na prisão. Nesse capítulo falo numa das várias formas de violência moral que a ditadura tinha, agora felizmente inexistentes porque não vivemos em ditadura, mas infelizmente também esquecidas e ignoradas. Era uma coisa tão simples e tão dramática como isto: os presos sujeito a medidas de segurança, um artificio jurídico obra de grandes juristas e professores de direito, para entregar à PIDE o controle do tempo de prisão – Cunhal, por exemplo terminou a pena em Janeiro de 1956 e só saiu da prisão porque fugiu em Janeiro de 1960 – tinham que demonstrar que não tinham “perigosidade” para poderem ser libertados. Isso significava para um comunista ter que declarar uma qualquer forma de abjuração dos suas ideias, garantir que nunca mais fazia política e se afastava do partido. Cunhal era todos os anos colocado perante esse dilema, continuar na prisão eternamente, ou abjurar frente à PIDE. Que era um verdadeiro dilema moral, um fio da navalha que cortava pelo carácter e pela personalidade, revela-se nas respostas angustiadas que deu repetidamente. Estas violências que não eram físicas mostram a face iníqua de um regime com que muita gente hoje se mostra complacente."
José Pacheco Pereira