05 abril 2005

órfãos de liderança

A figura de João Paulo II tem sido maioritariamente abordada na sua vertente espiritual. Para um não católico, a análise poderá ser feita numa dimensão mais humana e não será difícil concluir que Karol Wojtyla foi no último quarto de século o grande líder mundial.

Esta situação deveu-se a vários factores. O primeiro é o de que a humanidade está órfão de líderes fortes e transcendentes há já vários anos. Depois o papa tinha um conjunto de predicados, desde a voz à postura, que não deixaram indiferente quem o ouvia ou via e rapidamente conquistava a quem se dirigia.Dele emanava uma auréola de simpatia magnética e irresistível. Ninguém ficou alheio a este polaco que vindo do leste transportava uma clara personalidade latina. Com uma formação de actor na juventude, soube com mestria usar as suas qualidades vocais e de expressão no grande palco do Vaticano.

O seu sorriso contagiante, uma figura bondosa e ao mesmo tempo simples, uma pose impregnada de misticismo. As fotografias de beijos às crianças ou com uma miríade de jovens. As transmissões televisivas em banhos de multidões, ultrapassando as grandes concentrações de rock. As contínuas viagens a todos os continentes e aos locais mais impensáveis para o chefe da Igreja Católica, como foram os casos da Polónia e Cuba comunistas. Os gestos simbólicos de beijar a terra nos países visitados, bem como toda a coreografia do clero nas grandes cerimónias religiosas. Um discurso direccionado para a gente simples e a contínua procura da companhia dos doentes, idosos e desprotegidos. Uma vontade inabalável impregnada da coragem na defesa dos mais variados princípios, muitos deles quiçá ultrapassados face aos novos tempos. Todos estes atributos se encaixavam perfeitamente nos novos media em que a imagem é rainha e senhora.

Não menos importante foi a mensagem por ele veiculada. Pregou contra o “socialismo real” dos países do Leste, mas também contra o capitalismo desregrado e afrontou desassombradamente os principais líderes mundiais aquando das intervenções militares, principalmente no Afeganistão e no Iraque. Apesar de um grande conservadorismo na doutrina da Igreja falou da pobreza e da miséria mundial, defendendo o princípio da dignidade e a importância dos direitos humano num mundo injusto e desumano.

A sua verdadeira projecção, como líder mundial, atingiu-a quando foi o protagonista no redesenho do novo mapa geoestratégico mundial. Ele foi o grande despoletador, como é reconhecido pelos observadores mundiais, da perestroika de Gorbatchov que culminaria na queda do bloco soviético. Toda esta revolução silenciosa serviu a uma maior unidade europeia. Também no capítulo dos direitos do homem a sua voz foi tida em conta em todas as partes do mundo e estimada por todos os credos tornando-se conhecido e amado por muitos não católicos.

João Paulo II foi uma personagem que personificou ainda o encontro entre as religiões e as culturas no esforço despendido no ecumenismo, exemplo maior foi o episódio do pedido de perdão dirigido aos judeus. Nunca como agora se encontraram tantas pontes nos vários credos, apesar do crescimento da tensão política estigmatizado pelos fracos líderes nacionais. Esta é uma das grandes lições que ele deixa para a humanidade, a possibilidade de convivermos harmoniosamente na diferença religiosa e cultural.

Claro que há reversos da medalha que não irei explorar de forma rigorosa e extensa neste momento de perda. A sua figura dominadora, uma doutrina demasiada conservadora para o mundo em que vivemos e a praxis rigorosa e pouco tolerante do Vaticano abafou muita da diversidade que fazem também a riqueza da Igreja Católica, como é exemplo a teologia da libertação. Por outro lado o reforço proibitivo da contracepção e dos métodos anticoncepcionais prejudicou o desenvolvimento do mundo, o aparecimento de crianças não amadas, a proliferação de famílias numerosas com fracos recursos e constitui um óbice ao combate à SIDA. Por outro lado, a não abertura da Igreja à mulher, bem como o celibato dos sacerdotes são dois problemas que a Igreja não resolveu agravando as suas dificuldades perante um mundo que aspira mais modernidade.

O que fica é a memória de um grande líder mundial. A Igreja vai ficar órfã e temo que os próximos tempos não irão ser fáceis se esta não souber renovar-se. Também para o mundo, a sua morte constitui uma perda muito grande que vai demorar a reparar.

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