Todos os transmontanos e os durienses aprendem a viver e a
conviver com todo o tipo de bichos desde os primeiros momentos da vida: Ainda
no berço temos a companhia dos cães e dos gatos que se postam aos pés do menino
e vigiam a sua segurança. Logo que de forma autónoma nos locomovamos desatamos
a gatinhar atrás das galinhas e outros rabos da capoeira à procura de
companheiros de brincadeira. Aos primeiros passos, espreitamos os grilos nos
lameiros e a curiosidade faz-nos subir à copa das árvores para descobrir os
ninhos. Muito púberes saltamos para cima
do burro ou os mais sortudos para a garupa do cavalo e aí vamos passear pelo
campo e a sonhar aventuras de cobóis. Nos passeios pelo campo aprendemos a
defender-nos dos animais que nos podem fazer dano e a respeitar as distâncias
dos que prezam a insubmissão. Todos, ou quase todos, aprendemos a respeitar os
bichos pelo prazer da companhia, a dependência reciproca numa luta igual pela
vida e a liberdade.
Então é hora de escrever, que gosto dos animais e serei
sempre contra qualquer forma de abandono e maus-tratos, e por isso sinto
indignação pelo gato chamuscado na aldeia do Mourão. Porém, nesta história da
"Queima do Gato" confesso algumas irritações.
A primeira é a de colar esta chamada barbárie ao
"pacóvio" do aldeão, em comparação à suprema civilidade do citadino.
Esse mesmo fulano que mantém silêncio quando esconde a miséria humana em guetos
residenciais; que mostra um indisfarçável enfado pela insistência diária do
pedido de uma moeda no estacionamento da praça; que chuta caixas de cartão,
único lar dos sem-abrigo, da entrada do prédio onde habita; que aprisiona
pássaros, passarinhos e passarocos em minúsculas gaiolas; que enclausura cães e
gatos numa varanda de um metro quadrado e os abandona todos os verões no ermo
ou na estrada bem distante…
Uma outra exasperação é a quantidade de desaforos para as
gentes da aldeia vertida na forma de insultos nas redes sociais, nos
depoimentos entusiastas e militantes de virtude e moral dos programas de rádio
e televisão. São esses paladinos da ética que exigem uma fogueira para uma
aldeia inteira em troca da remissão de um pecado e de uma tradição idiota, mas
que nunca teve por objetivo queimar o pobre gato. Apetece-me lembrar-lhes as
palavras do Nazareno: “aquele que nunca pecou atire-lhe a primeira pedra”...
Para terminar, é sempre bom lembrar a desproporção da
natureza do ato, lamentável sem dúvida, perante situações mais preocupantes da
condição humana e que toma índices alarmantes da convivência misericordiosa: o
abandono dos idosos nos hospitais e lares de terceira idade, a violência
doméstica, o genocídio perpetrado no terrorismo e na bem atual falta de
acolhimento dos apátridas.
Pois salvem os gatos, mas não se esqueçam também de salvar
alguns homens.
2 comentários:
"Todos, ou quase todos, aprendemos a respeitar os bichos pelo prazer da companhia, a dependência reciproca numa luta igual pela vida e a liberdade"...
A propósito de tentar salvar alguns homens, podíamos lançar a questão dos excedentários da nossa Câmara Municipal e talvez os citadinos nos ajudem no movimento de apoio à sua reintegração.
Muito bem Zé. Há gente que uso e abusa das redes sociais julgando sem conhecimentos dos factos. É o povo que temos. O que me parece é que as pessoas deixaram de pensar pela sua cabeça e vão na conversa da, manipuladora por excelência, comunicação social.
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