28 outubro 2014

Ecce Homo



Nas nossas igrejas e capelas repousam objetos de inegável valor. Em Selores, o “Divino Ecce Homo” é uma bela imagem da arte sacra do concelho de Carrazeda de Ansiães e sobre ela se conta uma história, também bela e inspiradora. Apressamo-nos a contar:
Certo dia passou pela aldeia um pobre pedindo esmola. Ao chegar ao largo deparou com um perfeito tronco de amoreira. Era comum esta árvore no povoado, pois a cultura do bicho-da-seda[1] era uma atividade importante e complementar da subsistência da população.
No largo conversavam um grupo de pessoas ao sol: Dirigindo-se a elas disse-lhes:
- Que belo pau para fazer um santo!
- E vós sois capazes de o fazer? – interrogaram-no em jeito de desafio.
- Olhem, põem-me aí num lugar, eu e o pau, fechem a porta e, durante três dias, não ma abram!
Algumas das pessoas que se encontravam no largo soalheiro, breve se aprontaram a arranjar as ferramentas, outras pegaram no tronco e levaram-no para uma casa situada ali bem perto. Conta-se que a casa era dos Araújos e está situada no largo do Bebedouro. Aí se instalou o mendigo. Fechou a porta por dentro e durante três dias ninguém mais pode contactá-lo, nem tão pouco vivalma lhe pôs a vista em cima. A curiosidade das pessoas chegou a tal ponto que ainda pensaram bater à porta e entrar para observarem o trabalho, mas havia sempre alguém que recordava as palavras da misteriosa personagem. Soube-se que um ou outro mais curioso, pois sempre os há, ainda espreitou pelo buraco da fechadura, todavia a escuridão do casebre, nada deixava vislumbrar. (Será mesmo rural este hábito de espreitar para dentro de uma casa? Não o creio, pois rurais e, particularmente, os citadinos, toda a gente gosta de dar uma espreitadela na fechadura da casa famosa de uma televisão. Como teremos autoridade moral para continuar a dizer às nossas crianças, pois o ouvimos aos nossos avós, que, “espreitar é feio”?)
Ao terceiro dia, como fora prometido, a porta da casa, onde se abrigara o mendigo estava aberta e, com ansiedade, por ela alguém entrou. Do mendigo nem um sinal, e, a partir daí, ninguém mais o viu. Muitos juravam que se tratava do próprio Cristo e bem o tentaram procurar por toda a aldeia e arredores, mas em vão. Lá dentro encontrava-se tão só uma belíssima imagem de Jesus de Nazaré, flagelado, atado e com a coroa de espinhos. À imagem que restou e à fé dos homens são atribuídos diversos milagres e bem-aventuranças que os ex-votos susceptos – votos realizados em consagração, renovação ou agradecimento de uma promessa, estão expostos. Entre os muitos milagres conta-se aquele que alguém ouviu por aí contar: “uma ocasião, andava um senhor à caça, um senhor que ainda aqui tem netos (assegurava-se para tornar mais real o milagre). E esse senhor andava então lá prás ribeiras, quando se lhe disparou um tiro na barriga, que até as tripas lhe ficaram na mão. E então prometeu-se a ele, ao Divino Senhor Ecce Home, para que o salvasse, e o homem viveu.”
O Divino Ecce Homo, como refere o Evangelho segundo São João (19.5), foram as palavras pronunciadas pelo governador romano Pôncio Pilatos quando apresentou Jesus torturado perante a multidão hostil, à qual Pilatos submeteu o destino final do réu, posto que ele, Pilatos, lavava as mãos. Na iconografia cristã costuma chamar-se Ecce Homo ou Senhor da Cana Verde, vulgarmente com ela na mão a servir-lhe de ceptro, às figurações de Jesus apresentado em sofrimento.
Aí está aquele Cristo na Igreja Paroquial de Selores, meio despido e tão igual ao ser e estar das humildes gentes, uma chaga dos pés à cabeça e tão dorido como as agruras do trabalho e da vida provocam na pobre gente, ao mesmo tempo, um Cristo que mantém a dignidade, tal qual a alma honrada dos rurais. O Senhor da Cana Verde é a personificação da fraternidade que une o homem humilde ao sobrenatural.   Assim sem mais… é belo este pau de amoreira, cortado a golpes de navalha, pincelado com modestas tintas e soprado com o bafo santo da inspiração do Artista Maior que vale nas aflições das gentes de fé.
Para acabar, dizer que, a arte sacra concelhia é património comunitário que convém acautelar. Particularmente as igrejas e capelas das zonas de interior são um alvo apetecível para os amigos do alheio. Uma das primeiras precauções para salvaguardar perdas irreparáveis é o inventário dos haveres, pois pode inviabilizar a sua transação e após uma possível recuperação será mais fácil reaver os artigos; uma outra é proteger as peças valiosas em locais apropriados: museus… e substituí-los por cópias nos locais de culto…
Nesta viagem à Casa da Moura, já começada há algum tempo, vai sendo tempo de contar as histórias das mouras encantadas porque elas viveram e, ainda vivem, em fragas e rochedos, fontes e rios, poços e minas, castelos e ruínas, montes e cabeços da nossa terra… Fica para a próxima.




[1] O concelho de Carrazeda de Ansiães chegou a ser o terceiro na ordem de produção do bicho-da-seda. Um inquérito de 1869 fala de l 1000 a 1500 criadeiras no concelho. A exportação do casulo fazia-se em sacas de algodão, transportadas em carros de bois até à foz do Sabor, rio Douro abaixo, com destino ao Porto e, finalmente, até Marselha.” No século XX, há algumas tentativas para reanimar a produção, mas todas elas se mostram inúteis devido à expansão das indústrias têxteis. João Inácio Teixeira de Meneses Pimentel (1859-1915), engenheiro agrónomo, natural do Mogo de Malta é um dos principais entusiastas. Em 1891 transformou a Estação Químico-Agrícola da Segunda Região Agronómica de Mirandela em Estação de Sericicultura, onde passou exercer as funções de diretor.
Restam ainda algumas amoreiras que lembram a cultura e uma ou outra pessoa ainda a recordam. Para a eclosão dos ovos das borboletas, conta-se, eram colocados num pequeno saquitel de linho que se agasalham no seio, e onde, em um ou dois dias, favorecida pelo calor orgânico do corpo feminino, eclodiam.


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