Nas nossas igrejas e capelas repousam objetos de inegável
valor. Em Selores, o “Divino Ecce Homo” é uma bela imagem da arte sacra do
concelho de Carrazeda de Ansiães e sobre ela se conta uma história, também bela
e inspiradora. Apressamo-nos a contar:
Certo dia passou pela aldeia um pobre pedindo esmola. Ao
chegar ao largo deparou com um perfeito tronco de amoreira. Era comum esta
árvore no povoado, pois a cultura do bicho-da-seda[1]
era uma atividade importante e complementar da subsistência da população.
No largo conversavam um grupo de pessoas ao sol:
Dirigindo-se a elas disse-lhes:
- Que belo pau para fazer um santo!
- E vós sois capazes de o fazer? – interrogaram-no em jeito
de desafio.
- Olhem, põem-me aí num lugar, eu e o pau, fechem a porta e,
durante três dias, não ma abram!
Algumas das pessoas que se encontravam no largo soalheiro,
breve se aprontaram a arranjar as ferramentas, outras pegaram no tronco e
levaram-no para uma casa situada ali bem perto. Conta-se que a casa era dos
Araújos e está situada no largo do Bebedouro. Aí se instalou o mendigo. Fechou
a porta por dentro e durante três dias ninguém mais pode contactá-lo, nem tão
pouco vivalma lhe pôs a vista em cima. A curiosidade das pessoas chegou a tal
ponto que ainda pensaram bater à porta e entrar para observarem o trabalho, mas
havia sempre alguém que recordava as palavras da misteriosa personagem. Soube-se
que um ou outro mais curioso, pois sempre os há, ainda espreitou pelo buraco da
fechadura, todavia a escuridão do casebre, nada deixava vislumbrar. (Será mesmo
rural este hábito de espreitar para dentro de uma casa? Não o creio, pois
rurais e, particularmente, os citadinos, toda a gente gosta de dar uma espreitadela
na fechadura da casa famosa de uma televisão. Como teremos autoridade moral para
continuar a dizer às nossas crianças, pois o ouvimos aos nossos avós, que, “espreitar
é feio”?)
Ao terceiro dia, como fora prometido, a porta da casa, onde
se abrigara o mendigo estava aberta e, com ansiedade, por ela alguém entrou. Do
mendigo nem um sinal, e, a partir daí, ninguém mais o viu. Muitos juravam que
se tratava do próprio Cristo e bem o tentaram procurar por toda a aldeia e
arredores, mas em vão. Lá dentro encontrava-se tão só uma belíssima imagem de
Jesus de Nazaré, flagelado, atado e com a coroa de espinhos. À imagem que
restou e à fé dos homens são atribuídos diversos milagres e bem-aventuranças
que os ex-votos susceptos – votos
realizados em consagração, renovação ou agradecimento de uma promessa, estão
expostos. Entre os muitos milagres conta-se aquele que alguém ouviu por aí
contar: “uma ocasião, andava um senhor à caça, um senhor que ainda aqui tem
netos (assegurava-se para tornar mais real o milagre). E esse senhor andava
então lá prás ribeiras, quando se lhe disparou um tiro na barriga, que até as
tripas lhe ficaram na mão. E então prometeu-se a ele, ao Divino Senhor Ecce
Home, para que o salvasse, e o homem viveu.”
O Divino Ecce Homo, como refere o Evangelho segundo São João
(19.5), foram as palavras pronunciadas pelo governador romano Pôncio Pilatos
quando apresentou Jesus torturado perante a multidão hostil, à qual Pilatos
submeteu o destino final do réu, posto que ele, Pilatos, lavava as mãos. Na
iconografia cristã costuma chamar-se Ecce Homo ou Senhor da Cana Verde,
vulgarmente com ela na mão a servir-lhe de ceptro, às figurações de Jesus
apresentado em sofrimento.
Aí está aquele Cristo na Igreja Paroquial de Selores, meio
despido e tão igual ao ser e estar das humildes gentes, uma chaga dos pés à cabeça
e tão dorido como as agruras do trabalho e da vida provocam na pobre gente, ao
mesmo tempo, um Cristo que mantém a dignidade, tal qual a alma honrada dos
rurais. O Senhor da Cana Verde é a personificação da fraternidade que une o
homem humilde ao sobrenatural. Assim sem mais… é belo este pau de amoreira,
cortado a golpes de navalha, pincelado com modestas tintas e soprado com o bafo
santo da inspiração do Artista Maior que vale nas aflições das gentes de fé.
Para acabar, dizer que, a arte sacra concelhia é património
comunitário que convém acautelar. Particularmente as igrejas e capelas das
zonas de interior são um alvo apetecível para os amigos do alheio. Uma das primeiras
precauções para salvaguardar perdas irreparáveis é o inventário dos haveres,
pois pode inviabilizar a sua transação e após uma possível recuperação será
mais fácil reaver os artigos; uma outra é proteger as peças valiosas em locais
apropriados: museus… e substituí-los por cópias nos locais de culto…
Nesta viagem à Casa da Moura, já começada há algum tempo,
vai sendo tempo de contar as histórias das mouras encantadas porque elas viveram
e, ainda vivem, em fragas e rochedos, fontes e rios, poços e minas, castelos e ruínas,
montes e cabeços da nossa terra… Fica para a próxima.
[1]
O concelho de Carrazeda de Ansiães chegou a ser o terceiro na ordem de produção
do bicho-da-seda. Um inquérito de 1869 fala de l 1000 a 1500 criadeiras no
concelho. A exportação do casulo fazia-se em sacas de algodão, transportadas em
carros de bois até à foz do Sabor, rio Douro abaixo, com destino ao Porto e,
finalmente, até Marselha.” No século XX, há algumas tentativas para reanimar a
produção, mas todas elas se mostram inúteis devido à expansão das indústrias
têxteis. João Inácio Teixeira de Meneses Pimentel (1859-1915), engenheiro
agrónomo, natural do Mogo de Malta é um dos principais entusiastas. Em 1891
transformou a Estação Químico-Agrícola da Segunda Região Agronómica de
Mirandela em Estação de Sericicultura, onde passou exercer as funções de
diretor.
Restam ainda algumas amoreiras que lembram a cultura e
uma ou outra pessoa ainda a recordam. Para a eclosão dos ovos das borboletas,
conta-se, eram colocados num pequeno saquitel de linho que se agasalham no
seio, e onde, em um ou dois dias, favorecida pelo calor orgânico do corpo
feminino, eclodiam.
Sem comentários:
Enviar um comentário