20 setembro 2012

Arte, filologia e anarquia da expressão: Carlos Fiúza



Há aí quem imagine futilidade ou bizantinice a séria consideração de problemas de linguagem e de estilo. 
Volta e meia faz-se a apologia exclusiva do pensamento e a condenação da forma de o exprimir cuidadamente.
Nada de preocupações com a expressão - aconselha um. Pensemos nos problemas fatais da nossa idade - brada outro. Sintamos, traduzamos os conflitos íntimos não importa com que linguagem - exclama aqueloutro.
E todos opinam: pensar, sentir - eis o que interessa. Escrever mal é coisa de somenos. Se for preciso, estraguemos a Língua, mas pensemos, pensemos muito; iluminemos a província lusitana com ideias, muitas ideias.
Em minha opinião, não basta pensar, filosofar, sentir, poetar, romancear.
Parece-me necessário, indispensável, que o pensamento e o sentimento se comuniquem em forma, se não bela, pelo menos decente, não destruidora.
O aspirante a filósofo, o irremediável poeta, o frequente romancista, o inevitável crítico, todo o escritor, enfim, que se furte a dignificar a expressão deveria, por coerência, pensar em solilóquio, reduzir-se à situação de fala-só ou de escreve-só, ou, então, cuidar doutra vida.
Manda a verdade confessar que, no extremo oposto dos apologistas da calinada como processo de arte literária, existe o perigo da filologia apertada, com muitas teorias, abundantes regras, excessivos rigores. Realiza-se o estudo da Língua bastas vezes com demasiadas preocupações de código, e, por isso, a ciência filológica não raro aparece, em público, de aspeto medonho e quase irado, quando não surge exibindo impenetrável erudição, capaz de afugentar quantos de boa vontade procuram aprender.
Já agora, permito-me expender, por bem, algo do que penso a respeito de um ponto que, apesar de muito melindroso, nem por isso haverá de deixar de ser versado, com a franqueza que não agradará quase a ninguém:
- A Língua portuguesa tem sido triste vítima do exagerado zelo de alguns puristas, gramáticos e filólogos e do condenável desleixo e estólida execração de pseudoletrados.
Eça de Queiroz traçou um dia a caricatura do purista maníaco para o qual, digamos assim, a palavra é tudo.
Exagerado, o Mestre da ironia? Sem dúvida. No entanto, a verdade exige que se confesse - há por aí gente que pensa quase como aquele ridículo purista eciano.
Ora, do exagero do purismo cego advém à Língua o grande mal da reação do anarquismo leviano. E bem se podia delinear a caricatura do “inconformista”, para o qual a palavra não é nada ou quase nada.
Por desgraça da Língua tem-se desenhado no panorama das letras portuguesas a sombra daquilo a que chamei o pseudoletrado. O pseudoletrado é (na minha observação) aquele manejador da pena que sente no peito ou algures “emoção poética” e não quer escrever senão em linguagem de charada; é também aqueloutro escritor, de nome feito ou por fazer, que está convicto de lhe povoarem a mente ideias geniais e de que cumpre deitar luz cá para fora, mesmo que seja necessário desprezar o “instrumento de expressão”, a pobre língua, que não chega para as encomendas de tanta ideia luminosa; é mais o homem de letras que tem uma inspiração fogosa, instantânea, dinâmica e, por lhe ir na dianteira o pensamento, deixa para trás ofegante, agonizante, a expressão misérrima.
Como se tais males fossem poucos, ainda veio ajuntar-se-lhes outro mal não menos grave – o que se tem passado na filologia portuguesa.
Que é filologia?
Responder a esta pergunta com geral agrado de filólogos levar-me-ia muito tampo, e ao fim sempre haveria que retocar na definição. Prefiro utilizar-me da palavra “filologia” a designar a ciência cujo objeto é o estudo extenso e profundo da Língua como instrumento de toda a expressão oral e escrita. Intento, pois, abranger a chamada gramática e a chamada glotologia, e permito-me não divorciar da estilística a ciência filológica.
Assim, alargado o âmbito do termo filologia, evitarei delongas no que vou dizer com sinceridade.
Vários dos nossos filólogos têm tido grave culpa do desamor que se vota ao estudo da linguagem, no descrédito em que para muita gente caiu a filologia, na irreverência de muitos escritores perante o problema sério da conservação e defesa do Idioma.
Por um lado, o apego ferrenho a regras alheias às realidades da viveza da expressão falada e escrita; por outro, complicação, hermetismo, dificuldade no estudo, mais ou menos científico, de problemas filológicos.
Não preconizo a fantasia, nem a indisciplina, nem a precipitação na ciência da linguagem.
Avesso a improvisações, inimigo de anarquias, ganhei respeito a todo o trabalho sério, escrupuloso, verdadeiro. Mas a verdade de uma língua, como todas as verdades, deve procurar-se sem preconceitos, importa buscar-se com espírito refletido sem deixar de ser, porém, compreensivo da força dos factos, contrariadores de artificiais regras ou de leis duvidosas.
A Língua vive na boca do povo e dão-lhe perenidade os Escritores que a bem servem.
A gramática, a lexicografia, o vernaculismo, a estilística, a etimologia, a dialetologia precisam de ar, de vida; precisam de auscultar o povo, precisam de sair do gabinete.
Alguns dos nossos filólogos só têm estudado a Língua portuguesa dentro de casa e ela fala-se ao ar livre.
Qual o resultado que fatalmente advém de tudo isto e de muito mais que me abstenho de referir?
O resultado é cair em descrédito, em desprezo ou até em zombaria o estudo e a defesa do Idioma português.
E, no meio dos dois extremos, que fica? - A Língua portuguesa, tornada vítima inocente das incompreensões e leviandades de uns e dos impertinentes exageros ou demasias dos outros.
Urge reagir, a bem do Idioma, a bem da melhor compreensão, a bem do respeito a que se devem levar os anarquistas da expressão falada e escrita.
A meu ver, o remédio para a triste anarquia em que se encontra a Língua portuguesa estará nisto: por um lado, luta sem tréguas aos pseudoletrados arruinadores da expressão; mas (não se esqueça), por outro lado, menos hermetismo na investigação científica, menos subserviência a ensinamentos não documentados pelos Escritores vernáculos; maior aproximação da vida da linguagem falada vernaculamente.
Ponha-se a claro a estolidez de comentários de certos revolucionários das nossas letras.
E não deixe de arejar-se a Filologia!

Já é tempo de, em Portugal, as palavras gramática, filologia, linguística e chamações aparentadas com estas deixarem de significar impertinência, caturrice ou atrofiamento intelectual.

Urge, na verdade, não cair nos tão antipáticos rigores puristas (rigores que amiúde impedem as belezas) e se aprecie o real valor dos monumentos da literatura lusitana.

Mas também são horas de acabarem as anarquias da expressão.

Carlos Fiúza

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