IV - Futebol
Quem, (quase) em qualquer dia da semana, ligar a televisão ou
o aparelho de telefonia para (quase) qualquer estação, já sabe que lhe entram
pela casa dentro palavras como estas, “mutatis mutandis”:
“Bola fora pela linha lateral”. “A bola vai cair junto da
bandeirola de canto”. “O esférico passou a rasar a trave”, etc., etc., etc.
E a bola, a bola, a bola rebola, rebola e rebola!
No dia seguinte saem os jornais… á a bola a rebolar, a
rebolar nas páginas da imprensa.
Os rapazes, nas escolas, nos liceus, nas universidades; os
operários nas oficinas; os empregados nos escritórios, muita e muita gente só
discute a bola.
Pois se assim é, eu, (reconhecendo o valor universal da bola,
porque tudo afinal neste Mundo é bola, desde o próprio Globo terráqueo até ao
cérebro que nos faz pensar), tenho obrigação de falar de bola também.
Venho, portanto, falar de futebol.
A bola é nos tempos atuais o ídolo das multidões. O pontapé
ao chamado “esférico” assume proporções de arte.
Milhões de olhos, triliões de braços, sextiliões de gritos -
tudo isso a bola impressiona e provoca.
GOLO! - é o grito da vitória nesta nova era da bola. Entrar nas redes é a
aspiração “máxima universal”.
Em jornais, em emissoras, em televisões, em conversas, em
cartazes, em livros, em revistas, em toda a parte - a bola domina.
Seja, pois, esta conversa a respeito do futebol.
E para começo convém dizer que o futebol não é de origem inglesa. A Inglaterra só aperfeiçoou antigos jogos semelhantes. Parece que o futebol não
é senão o aperfeiçoamento de jogo equivalente da idade média. E até se pode ir
mais longe, porque 3.000 anos antes de Cristo já se jogava à bola no Celeste
Império.
Consta que o imperador Ching-Ti era o que hoje se chamaria um
“doente da bola”. Quando ele fazia anos, havia desafio e, si vera est fama, o
capitão da formação vencida levava uma data de açoites na presença do “celeste
imperador”.
Como quer que seja, o jogo
da bola é hoje um jogo universal.
Pela parte que nos interessa, devo acentuar que o jogo da
bola deu a Portugal uma excelente lição de linguística. Se houve coisa que
importámos, essa foi sem dúvida o futebol, que a Inglaterra nos ofereceu
aperfeiçoado. Ora, apesar de vindo do estrangeiro, o futebol está hoje quase
todo aportuguesado. E a lição de linguística dada pelo jogo da bola a Portugal
foi precisamente esta - a prática mais estrangeirada pode aportuguesar-se,
havendo boa vontade.
Muito e muito se pode e deve traduzir e adaptar, como o
futebol nos ensinou. E assim aqueles que apregoam a impossibilidade de
nacionalizarmos o que vem de fora levam no futebol uma formidável lição, porque
o futebol português está, na maior parte, nacionalizado na expressão.
Mas vejamos o caso:
O futebol é um
desporto que põe em desafio onze jogadores de uma banda contra onze adversários
da outra banda do terreno, em cujos extremos se colocam balizas, constituídas
por três traves que, com a linha do chão, formam retângulo, com uma rede.
Na essência, o jogo visa a introdução da bola na baliza, introdução
que é feita com o impulso da bola por meio dos pés ou da cabeça dos jogadores.
A luta travada pelos jogadores denomina-se em Inglaterra
“match”, que é portanto - desafio, encontro, jogo, peleja, contenda,
competição, pugna, luta, despique em português. Essa luta trava-se no campo, no
terreno, no retângulo, palavras nossas que evitam perfeitamente o inglês
“ground”, ou “field”.
O jogo disputa-se, como já se disse, entre dois grupos de
onze jogadores, grupos a que se chama “teams” em inglês. Em nossa língua jamais
se deveria escrever “team”, pois os termos “grupo”, “formação” e até “onze”,
evitam um disparate de alguma gente, que lê “tiã”, em vez de “time”, pronúncia
do inglês “team”.
Como se sabe, a nomenclatura desportiva, em particular a do
futebol, é quase toda de origem inglesa. E digo quase toda porque me estou a
lembrar de termos como “équipe” e mais um ou outro, que nos vieram lá da
França.
Esta “équipe” está pegada em “equipa”, tanto no sentido de “grupo”, “turma”, “conjunto”, “onze”,
como até no sentido de “camisola” ou “cores”. Já se formou o verbo “equipar”:
os jogadores estão a “equipar-se”. E muito se fala no “espírito de equipa”.
Os ingleses chamam aos jogadores “players”. E eu lembro-me
bem de que se chegou a empregar em Portugal o “player”, que alguns liam
“plaière”, em vez de “plêia”. Hoje, só se diz jogador, e muito bem.
Durante muito tempo se discutiram os termos ingleses do
futebol, e os nomes aplicáveis aos jogadores entraram na dança das hesitações.
Felizmente, hoje o caso está resolvido.
O guarda das redes (em inglês “goalkeeper”, isto é, “the man
who keeps the goal”) deixou de ser o “kipèr”, como por cá se dizia. Nos meus
tempos de liceu, quando joguei à bola, era quase só “kipèr” que a gente dizia.
Hoje o guarda-redes é forma dominante,
palavra expressiva a que correspondem outras nacionalizações fora de Portugal.
Por exemplo, no Brasil o guarda-redes é o “arqueiro”. Na Espanha ainda se diz
“guardião”…
À frente do guarda-redes estão (nem sempre) dois jogadores
defensivos chamados em inglês “full-backs”; “right back” e “left back”, que
traduzimos por defesas, defesa
direito e defesa esquerdo, usando-se direito e esquerdo no masculino, por se
tomar defesa nesse género - o defesa, um defesa.
No meu liceu dizíamos o “beque”. Vingou o defesa, e muito
bem. No Brasil o defesa é o “zagueiro”, nome bem engraçado.
.A seguir aos defesas estão os médios: médio centro, médio direito e médio esquerdo,
respetivamente traduções do inglês – “centre half, rigt half and left half”.
Recordo-me que se dizia erradamente os “halfes”, quando em
inglês o plural é “the halves”. Médios
evita o erro de gramática inglesa.`
Á frente vão os avançados,
ou the “forwards” em Inglaterra. Como esta palavra “forward” é de fonética e
escrita tipicamente inglesa, cá em Portugal nunca se lhe pegou e sempre os
avançados foram o termo nacional. No Brasil, em vez de avançados, adotaram-se
dois termos pitorescos - os “dianteiros” ou os “ponteiros”.
Além dos jogadores, anda no campo o árbitro, que em inglês é the “referee”. No meu tempo dizia-se o
“refe”, com supressão da sílaba tónica inglesa, por não se saber que a do fim é
que se acentua.
A designação de “juiz de campo” é demasiado pretensiosa e
raramente empregada. Juízes de linha são forçada tradução para os “liners”, os
homens da bandeirola sinalizadora de bolas para fora e para dentro do campo, os
quais melhor se chamam os fiscais de
linha.
O campo é demarcado. Os quatro ângulos do retângulo, “the
corners”, estão bem traduzidos por cantos.
Pena é que às vezes se empregue o termo inglês “corner” (marcar um “còrnér”),
em vez de marcar um canto, que deve
ser a forma exclusiva.
O objetivo do jogo da bola é introduzir o esférico na baliza
Tal como aconteceu na Inglaterra a palavra “goal”, que
propriamente é baliza (“two
goal-posts and a crossbar”, as traves), passou a significar o próprio tento conseguido com a penetração da
bola na baliza.
Ora, esta palavra “goal” tem sido muito discutida, e não
admira, porque “the goal” é a razão de ser do futebol.
GOAL! - princípio e fim do jogo, a sua única razão de ser. As multidões de
quase todo o Mundo vibram de entusiasmo, deliram ou sofrem e até se desesperam
quando a bola entra na baliza, no goal.
Ora, o entusiasmo é tal com a palavra golo (na aceção de ponto
ou tento), que já me parece inútil
protestar contra este termo tornado naturalíssimo na boca dos Portugueses.
Pois, já que o grito sai espontâneo, deixe-se entrar o “golo”
nas redes dos dicionários portugueses.
Diante da baliza, temos o que em inglês se chama “the penalty
area”, a área da penalidade. Nesta área se marcam os castigos máximos, como
indica a palavra inglesa “penalty”, que corresponde à nossa penalidade.
No meu tempo da bola, apreciava-se deveras o chamado
“dribbling”, a finta, à brasileira.
Hoje, a técnica futebolística recomenda mais o jogo científico de desmarcações,
com passagens de bola calculadas.
Por aqui se vê, que tudo (mais tarde ou mais cedo) se traduz.
Todavia, o nosso povo, se bem que diga já naturalmente futebol, o certo é que mais naturalmente
ainda o que diz é - vou à bola, estive
na bola, hoje há bola, a que horas
dá a bola.
Chama-se já por aí ao futebol o desporto-rei. E temos de
reconhecer, ainda que seja de má vontade, esta realeza de facto, que eu não
pretendo discutir se o é de direito.
O jogo do pau, as touradas, o eixo, a barra, as uvas, a
bilharda, o macaco, jogos da rapaziada - tudo isso vai esquecendo ante a doença
coletiva dos nossos tempos - a doença da
bola!
Apodam-se de “doentes da bola” os seus adeptos fanatizados.
Mas não podemos censura-los em demasia, porque não há ninguém que não seja
fanático por qualquer coisa.
Aliás, a luta pela bola dura há milénios: começou quando o
homem primitivo disputava à pedrada o pão de cada dia.
A própria vida é um desafio de futebol.
Todos nós fazemos de guarda-redes,
quando nos defendemos dos nossos inimigos. Todos fazemos de avançados, quando metemos o golo dos
nossos interesses.
Mas atenção ao apito!
O apito é a voz da nossa consciência!
Carlos Fiúza
1 comentário:
Futebol... ou a LIÇÃO DE ANALOGIA!
mais uma vez, temos que parebenizar Carlos Fiúza.
h.r.
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