25 abril 2012

Poeiras do meu sótão… (Carlos Fiúza)


IV - Futebol

Quem, (quase) em qualquer dia da semana, ligar a televisão ou o aparelho de telefonia para (quase) qualquer estação, já sabe que lhe entram pela casa dentro palavras como estas, “mutatis mutandis”:
“Bola fora pela linha lateral”. “A bola vai cair junto da bandeirola de canto”. “O esférico passou a rasar a trave”, etc., etc., etc.
E a bola, a bola, a bola rebola, rebola e rebola!
No dia seguinte saem os jornais… á a bola a rebolar, a rebolar nas páginas da imprensa.
Os rapazes, nas escolas, nos liceus, nas universidades; os operários nas oficinas; os empregados nos escritórios, muita e muita gente só discute a bola.
Pois se assim é, eu, (reconhecendo o valor universal da bola, porque tudo afinal neste Mundo é bola, desde o próprio Globo terráqueo até ao cérebro que nos faz pensar), tenho obrigação de falar de bola também.
Venho, portanto, falar de futebol.
A bola é nos tempos atuais o ídolo das multidões. O pontapé ao chamado “esférico” assume proporções de arte.
Milhões de olhos, triliões de braços, sextiliões de gritos - tudo isso a bola impressiona e provoca.
GOLO! - é o grito da vitória nesta nova era da bola. Entrar nas redes é a aspiração “máxima universal”.
Em jornais, em emissoras, em televisões, em conversas, em cartazes, em livros, em revistas, em toda a parte - a bola domina.
Seja, pois, esta conversa a respeito do futebol.
E para começo convém dizer que o futebol não é de origem inglesa. A Inglaterra aperfeiçoou antigos jogos semelhantes. Parece que o futebol não é senão o aperfeiçoamento de jogo equivalente da idade média. E até se pode ir mais longe, porque 3.000 anos antes de Cristo já se jogava à bola no Celeste Império.
Consta que o imperador Ching-Ti era o que hoje se chamaria um “doente da bola”. Quando ele fazia anos, havia desafio e, si vera est fama, o capitão da formação vencida levava uma data de açoites na presença do “celeste imperador”.
Como quer que seja, o jogo da bola é hoje um jogo universal.
Pela parte que nos interessa, devo acentuar que o jogo da bola deu a Portugal uma excelente lição de linguística. Se houve coisa que importámos, essa foi sem dúvida o futebol, que a Inglaterra nos ofereceu aperfeiçoado. Ora, apesar de vindo do estrangeiro, o futebol está hoje quase todo aportuguesado. E a lição de linguística dada pelo jogo da bola a Portugal foi precisamente esta - a prática mais estrangeirada pode aportuguesar-se, havendo boa vontade.
Muito e muito se pode e deve traduzir e adaptar, como o futebol nos ensinou. E assim aqueles que apregoam a impossibilidade de nacionalizarmos o que vem de fora levam no futebol uma formidável lição, porque o futebol português está, na maior parte, nacionalizado na expressão.
Mas vejamos o caso:
O futebol é um desporto que põe em desafio onze jogadores de uma banda contra onze adversários da outra banda do terreno, em cujos extremos se colocam balizas, constituídas por três traves que, com a linha do chão, formam retângulo, com uma rede.
Na essência, o jogo visa a introdução da bola na baliza, introdução que é feita com o impulso da bola por meio dos pés ou da cabeça dos jogadores.
A luta travada pelos jogadores denomina-se em Inglaterra “match”, que é portanto - desafio, encontro, jogo, peleja, contenda, competição, pugna, luta, despique em português. Essa luta trava-se no campo, no terreno, no retângulo, palavras nossas que evitam perfeitamente o inglês “ground”, ou “field”.
O jogo disputa-se, como já se disse, entre dois grupos de onze jogadores, grupos a que se chama “teams” em inglês. Em nossa língua jamais se deveria escrever “team”, pois os termos “grupo”, “formação” e até “onze”, evitam um disparate de alguma gente, que lê “tiã”, em vez de “time”, pronúncia do inglês “team”.
Como se sabe, a nomenclatura desportiva, em particular a do futebol, é quase toda de origem inglesa. E digo quase toda porque me estou a lembrar de termos como “équipe” e mais um ou outro, que nos vieram lá da França.
Esta “équipe” está pegada em “equipa”, tanto no sentido de “grupo”, “turma”, “conjunto”, “onze”, como até no sentido de “camisola” ou “cores”. Já se formou o verbo “equipar”: os jogadores estão a “equipar-se”. E muito se fala no “espírito de equipa”.
Os ingleses chamam aos jogadores “players”. E eu lembro-me bem de que se chegou a empregar em Portugal o “player”, que alguns liam “plaière”, em vez de “plêia”. Hoje, só se diz jogador, e muito bem.
Durante muito tempo se discutiram os termos ingleses do futebol, e os nomes aplicáveis aos jogadores entraram na dança das hesitações. Felizmente, hoje o caso está resolvido.
O guarda das redes (em inglês “goalkeeper”, isto é, “the man who keeps the goal”) deixou de ser o “kipèr”, como por cá se dizia. Nos meus tempos de liceu, quando joguei à bola, era quase só “kipèr” que a gente dizia. Hoje o guarda-redes é forma dominante, palavra expressiva a que correspondem outras nacionalizações fora de Portugal. Por exemplo, no Brasil o guarda-redes é o “arqueiro”. Na Espanha ainda se diz “guardião”…
À frente do guarda-redes estão (nem sempre) dois jogadores defensivos chamados em inglês “full-backs”; “right back” e “left back”, que traduzimos por defesas, defesa direito e defesa esquerdo, usando-se direito e esquerdo no masculino, por se tomar defesa nesse género - o defesa, um defesa.
No meu liceu dizíamos o “beque”. Vingou o defesa, e muito bem. No Brasil o defesa é o “zagueiro”, nome bem engraçado.
.A seguir aos defesas estão os médios: médio centro, médio direito e médio esquerdo, respetivamente traduções do inglês – “centre half, rigt half and left half”.
Recordo-me que se dizia erradamente os “halfes”, quando em inglês o plural é “the halves”. Médios evita o erro de gramática inglesa.`
Á frente vão os avançados, ou the “forwards” em Inglaterra. Como esta palavra “forward” é de fonética e escrita tipicamente inglesa, cá em Portugal nunca se lhe pegou e sempre os avançados foram o termo nacional. No Brasil, em vez de avançados, adotaram-se dois termos pitorescos - os “dianteiros” ou os “ponteiros”.
Além dos jogadores, anda no campo o árbitro, que em inglês é the “referee”. No meu tempo dizia-se o “refe”, com supressão da sílaba tónica inglesa, por não se saber que a do fim é que se acentua.
A designação de “juiz de campo” é demasiado pretensiosa e raramente empregada. Juízes de linha são forçada tradução para os “liners”, os homens da bandeirola sinalizadora de bolas para fora e para dentro do campo, os quais melhor se chamam os fiscais de linha.
O campo é demarcado. Os quatro ângulos do retângulo, “the corners”, estão bem traduzidos por cantos. Pena é que às vezes se empregue o termo inglês “corner” (marcar um “còrnér”), em vez de marcar um canto, que deve ser a forma exclusiva.
O objetivo do jogo da bola é introduzir o esférico na baliza
Tal como aconteceu na Inglaterra a palavra “goal”, que propriamente é baliza (“two goal-posts and a crossbar”, as traves), passou a significar o próprio tento conseguido com a penetração da bola na baliza.
Ora, esta palavra “goal” tem sido muito discutida, e não admira, porque “the goal” é a razão de ser do futebol.
GOAL! - princípio e fim do jogo, a sua única razão de ser. As multidões de quase todo o Mundo vibram de entusiasmo, deliram ou sofrem e até se desesperam quando a bola entra na baliza, no goal.
Ora, o entusiasmo é tal com a palavra golo (na aceção de ponto ou tento), que já me parece inútil protestar contra este termo tornado naturalíssimo na boca dos Portugueses.
Pois, já que o grito sai espontâneo, deixe-se entrar o “golo” nas redes dos dicionários portugueses.
Diante da baliza, temos o que em inglês se chama “the penalty area”, a área da penalidade. Nesta área se marcam os castigos máximos, como indica a palavra inglesa “penalty”, que corresponde à nossa penalidade.
No meu tempo da bola, apreciava-se deveras o chamado “dribbling”, a finta, à brasileira. Hoje, a técnica futebolística recomenda mais o jogo científico de desmarcações, com passagens de bola calculadas.
Por aqui se vê, que tudo (mais tarde ou mais cedo) se traduz.
Todavia, o nosso povo, se bem que diga já naturalmente futebol, o certo é que mais naturalmente ainda o que diz é - vou à bola, estive na bola, hoje há bola, a que horas dá a bola.
Chama-se já por aí ao futebol o desporto-rei. E temos de reconhecer, ainda que seja de má vontade, esta realeza de facto, que eu não pretendo discutir se o é de direito.
O jogo do pau, as touradas, o eixo, a barra, as uvas, a bilharda, o macaco, jogos da rapaziada - tudo isso vai esquecendo ante a doença coletiva dos nossos tempos - a doença da bola!
Apodam-se de “doentes da bola” os seus adeptos fanatizados. Mas não podemos censura-los em demasia, porque não há ninguém que não seja fanático por qualquer coisa.
Aliás, a luta pela bola dura há milénios: começou quando o homem primitivo disputava à pedrada o pão de cada dia.
A própria vida é um desafio de futebol.
Todos nós fazemos de guarda-redes, quando nos defendemos dos nossos inimigos. Todos fazemos de avançados, quando metemos o golo dos nossos interesses.
Mas atenção ao apito!
O apito é a voz da nossa consciência!

Carlos Fiúza

1 comentário:

Anónimo disse...

Futebol... ou a LIÇÃO DE ANALOGIA!
mais uma vez, temos que parebenizar Carlos Fiúza.
h.r.