A
nossa infância esteve povoada de seres mágicos, encarnado nas bruxas, feiticeiras e mouras encantadas. A
bruxa tem mau aspeto, traja farrapos escuros, é velha, decrépita,
mal-encarada. A feiticeira é mais nova, de cabelos compridos, ar agradável, porte sedutor. Em comum, uma e outra detêm poder para fazer mal a pessoas e
animais. A moura encantada transporta uma outra mitologia, associada à lenda, sempre catarse, ligada à transformação social. A crença popular diz que, quando os
mouros, pela força das armas cristãs, se viram obrigados a largar as nossas
terras, deixaram lindas mouras encantadas em guarda a seus tesouros, aí continuam à espera de ser descobertos, porque ainda ninguém o conseguiu. Delas falaremos adiante.
Os
mais velhos ensinavam que as bruxas e as feiticeiras se reuniam nos montes e nos ermos da Cabeçoita, da Fonte
Mateus, do Castelo, da Forca particularmente nas noites escuras como o bréu. Vinham
ao povoado de tempos a tempos, enfeitiçar as "boas almas",
diabolizar os menos precavidos. Por vezes, as pessoas adoeciam - as crianças eram, quase sempre, o elo mais fraco e definhavam a olhos vistos, em questão de dias e horas, por causa de um "ar", de um mau-olhado, de uma encruzilhada, de passar à porta do cemitério; os adultos ficavam cismados, calados e depressa também adoeciam gravemente sem razão aparente. Muitas vezes, ou por descuido ou artimanha, faziam-se anunciar com ruídos estranhos: dever-se-iam esconjurar, sempre, e jamais olhar para trás, ou seguir, com pena de uma catástrofe quase certa. Sem remédio para todos os males que transportavam, a solução era a oração e a reza.
As
feiticeiras e as bruxas também adquiriam uma existência quase real. Sempre que alguém chegava a
uma idade demasiada avançada, depressa se transfigurava. Porventura, era mais
fácil explicar a longevidade das pessoas e desculpar o incómodo que representava
para as famílias. Em segredo cochichava-se da passagem da “pobre alma” a este
estado, quase mágico. Estranha fatalidade, a da mulher idosa! Sim,
porque os homens quase nunca atingiam tais idades. Contava-se, que, nessa
categoria de feiticeira ou bruxa, jamais morreria e a única solução era
colocar-lhe um jugo dos bois sobre os ombros, em cima do pescoço. Esta receita
não era segredo para ninguém, o que nunca me contaram, foi se a prescrição foi
posta em prática. Conferi em Torga, anos depois, ao ler o conto da montanha,
por ele chamado, “Alma Grande”, porventura, a razão verdadeira desse remédio: o
jugo poderia ser a habilidade de um qualquer abafador com “a tenaz das suas
mãos e o peso do seu joelho” a passarem “guia à moribunda” (Torga, 2002: 336).
Seria, pois, o jugo uma qualquer almofada ou travesseiro que antes amparara a
cabeça cansada da pobre "feiticeira velha"? Nunca ninguém há de
responder a esta pergunta, pois o tempo das bruxas e feiticeiras já terminou e os velhos,
agora, morrem, quase sempre tristes e sós, no isolamento das suas casas, na brancura assética e frígida dos
hospitais, no desolamento dos lares de terceira idade.
O
religioso e o profano misturavam-se em crenças e saberes. Pontuavam o ritmo da
vida numa cadência em que tudo se influenciava - a saúde e a doença, o trabalho
e o lazer, a condição social e o porvir estavam condicionados a um conjunto de
práticas a que nenhum mortal conseguia escapar. Tal qual marionetas, ligadas por
cordéis a um grande prestigiador, os mortais de pouca margem de manobra dispunham.
Esse fado pesava como chumbo na vida diária e determinava tudo. Era o destino,
e fintá-lo só estava reservado a muito poucos. A condição de pobre e a quase impossibilidade de ascender na vida socialmente, tinha uma explicação, o destino. O Destino era a sucessão inevitável de
acontecimentos relacionada a uma possível ordem cósmica, natural, da qual nada que existe pode escapar. Qual moira grega a fabricar, tecer e cortar a vida das pessoas, havia que aceitar pacientemente a catástrofe natural, a doença, a miséria, a fome.
A
religiosidade também presente nas crenças populares, misturava-se com um
conjunto de seres e acontecimentos que influenciam a sua vida. As pragas e as
coisas-ruins, as almas do outro mundo e as bruxarias, os fantasmas e as abantesmas,
o mau-olhado e as encruzilhadas, povoavam o imaginário.
O uso de palavras e fórmulas mágicas para o esconjuro e o exorcismo da
maldição é pertença de apenas alguns eleitos. Na aldeia, apenas um ou outro homem e mulher
eram depositário desse poder extraordinário de afastar os males, pois conheciam
os segredos das rezas, das mezinhas e dos gestos mágicos, como esta oração para o mau-olhado:
Deus te fez,
Deus te criou.
Deus te tire o mal,
Que em teu corpo entrou.
Se o tens na cabeça,
Que to tire Santa Teresa.
Se o tens no coração,
Que to tire S. João.
Se o tens no corpo todo,
Eu te entrego a Deus
Todo-Poderoso.
Ao longo dos anos, foram desenvolvendo
diversas rezas e curas para resolverem os problemas de saúde mais frequentes. As boas almas necessitavam dos
unguentos, dos chás e das drogas, mas também das rezas e dos gestos mágicos, como do pão para a boca, e
apenas as mãos experientes os sabiam executar e lábios sábios as sabiam pronunciar. O
azeite, o vinagre, o sal, o mel, as infusões constituíam-se como ingredientes
mágicos que serviam a muitas doenças e dores, acrescentados das rezas que
também aliviavam as dores da ciática, das costas, da barriga…
A crença mais comum era a existência de uma inflamação,
provocada pelos sapos, salamandras, cobras, aranhas e outros bichos, a que
chamavam “coxo”. Para a curar diziam assim:
Coxo, recoxo vai-te daquiSe és de cobra, vai cobrar
Se és de aranha, vai para a terra
Se és de sapo, vai para o buraco
Se és de coelho, vai para a toca
Se és de galinha vai para o choco
Pela graça de Deus e da Virgem Maria,
Um Pai-Nosso e uma Ave-Maria
A senhora Pulchana retirava o seu lenço preto da cabeça, dobrava-o longitudinalmente, e com ar grave, sério, sacerdotal, dizia a cantilena, sem titubear ou se enganar, e media o farrapo negro, de palmos ,de forma sucessiva, até que, de forma mágica, os palmos acabavam por bater certo em todo o seu comprimento. Era o momento do corte decisivo do coxo e, magia: num par de dias desaparecia por encanto.
Não eram só as doenças do corpo que contavam, as do
espírito eram tão ou mais importantes que as físicas. Também havia rezas para
arrenegar invejas, medos e outros ódios.
Muitas
orações eram individuais, competia a cada um rezá-la, eram conhecidas de quase todos e
serviam aos apertos das intempéries como esta Oração para a trovoada
Santa Bárbara bendita
Que no Céu está escrita
Com papel e água benta
Livrai-nos desta tormenta
(do sítio do costume, como já referido)
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