Há pouco tempo desapareceu da nossa companhia uma pessoa que marcou décadas da vida do concelho de Carrazeda: o Dr. Morais.
A sua passagem pelo mundo divide-se em variadas facetas: - a de médico, a de político, a de empresário, a de agricultor e, por último, a de poeta.
Como médico, ele foi, a seu modo, uma espécie de derradeiro João Semana destas paragens e improvisador de soluções compagináveis com as circunstâncias temporais que lhe foi dado viver.
Ele foi tudo: - parteiro, dentista, médico de clínica geral e de alguma cirurgia.
Ficou mesmo famoso pelo método usado para tirar a dor ciática: - queimar o nervo que se situa atrás da orelha. – O seu consultório não primava pela higiene ou pelos apetrechos mais modernos. Mas, seguramente, ninguém saía sem uma consulta cuidadosa e sem o remédio necessário.
Ele era, como médico, no seu tempo, o homem certo no lugar certo. Não havia qualquer dessintonia entre o seu modo de fazer medicina e o modo de vida das gentes que tratava.
Como político, antes do vinte e cinco de Abril, foi um elemento da situação. Depois do vinte e cinco de Abril, pugnou não digo pela reposição da ordem anterior mas sim na contestação da nova ordem política. Acreditava firmemente que a política seria para uma elite, devendo todos os outros apenas cumprirem as ordens ditadas por essa elite. Pensava que só após a difusão generalizada da educação seria possível uma verdadeira democracia.
No sistema do anterior regime exerceu papel de proa a nível concelhio. Mas se nós aceitarmos duas correntes no sistema, uma em que o papel principal devia ser representado por uma elite conservadora, laudatória dos valores tradicionais e imobilista no plano económico e social, e outra em que a elite era sobretudo formada por elementos dinâmicos, desejosos do progresso económico e social, embora com o respeito dos valores tradicionais, então poderemos afirmar seguramente que o Dr. Morais era partidário desta segunda corrente.
A noção de Nação não era estática, apenas seguidora das virtudes dos nossos antepassados e cultora de uma paz social e económica que não precisava de grandes mudanças para não ocasionar grandes sobressaltos, mas sim dinâmica, de um dinamismo que modernizasse a vida económica e social e desse ao povo uma vida melhor, sempre debaixo da orientação da União Nacional.
Pela sua acção, pelo seu irrequietismo, pode com certeza garantir-se que o Dr. Morais pugnava pela modernização do país.
Isso mesmo fica provado através da sua terceira faceta: - a de empreendedor.
O exemplo mais flagrante é o da construção por ele levada a cabo do edifício onde hoje funciona a Escola Profissional. Ele realmente, para conseguir um lugar onde os carrazedenses pudessem dar continuidade aos seus estudos, lutou contra tudo e todos, desde a burocracia às más vontades que se levantaram.
Para que melhor se pudesse aquilatar da sua determinação, ele próprio ajudava nos trabalhos concretos inerentes à edificação: - ele foi servente, trolha, pedreiro – num arregaçar de mangas que mostrava a toda a gente quão longe ia o seu querer. E a obra fez-se. E num tempo em que as coisas não eram nada fáceis.
Natural de Linhares, ao que julgo, o Dr. Morais teria que ser também agricultor. A par das outras actividades, ele dedicava-se ao trabalho do campo. E mais uma vez o fazia de forma empenhada, fazendo, como mais um seu elemento, parte integrante do grupo de pessoas que trabalhava a terra: - ele cavava, regava, mondava, podava. Tudo o que os outros faziam ele fazia, mais uma vez estando assim em sintonia com as gentes que o rodeavam.
Mas o mais interessante de tudo é que as várias facetas andavam permanentemente interligadas: - no seu carro trazia instrumentos de médico, (estetoscópio), de política (apontamentos doutrinários), de empresário (utensílios de construção), de agricultor (enxada), tudo isto formando um todo pronto a ser utilizado ao longo do dia.
Tudo o atrás descrito já seria mais que suficiente para encher a vida de uma pessoa. No entanto, julgo que sem que nada o fizesse prever, o Dr. Morais apareceu-nos, por último, com a sua faceta mais sublime: - a de poeta.
Parece até que acabar em poeta é terminar ao arrepio de tudo o que antes tinha sido feito… ou talvez venha mostrar quão idealista foi em tudo aquilo a que se dedicou.
E se ele se tivesse limitado a ser um poeta vulgar, tosco, sem ideias, com rima forçada, ainda poderíamos aceitar. – Mas não: ele poetizou de forma superior, não acessível a principiantes.
Ele tem ideias, ele rima com facilidade e de formas diversas, os versos não saem forçados, podendo afirmar-se que ele nasceu mesmo poeta.
Foi durante muito tempo uma faceta desconhecida, que, quando surgiu, brotou forte, pujante, verdadeira. – Como explicar este fenómeno?
A mim só me ocorre uma explicação: – o seu cérebro nasceu já com o condão de versejar e estava à espera de uma oportunidade para se revelar; só que essa oportunidade, neste caso, só surgiu no fim da vida.
Por todas as suas facetas e, sobretudo, por esta última – a de poeta – que lhe permitiu sublimar alguns aspectos menos apreciáveis da sua personalidade, bem se pode dizer que o Dr. Morais irá constituir um paradigma para todos os seus conterrâneos.
João Lopes de Matos
1 comentário:
Um belo texto do Dr. João Lopes de Matos: bem organizado, reflectido, contextualizado, sentido e, sobretudo grande conhecedor da figura referida. O Dr. Mrais deve, sem dúvida, constar do friso das figuras do nosso "Pensar". Porque como escrevi aqui aquando da sua partida deste mundo "foi sempre um homem que tentou sair da mediocridade e através dos mais diversos gestos e obras remou contra a maré e iniciou projectos e práticas que o guindaram à notoriedade", destacando-o do comum dos carrazedenses. Continua a esperar-se uma justa homenagem.
Destaco a nova ligação do pensar - http://friso-de-figuras.blogspot.com - dedicado aos grandes carrazedenses.
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