A Terra, ou seja, prosaicamente, este poleiro onde Deus nos
colocou nos espaços siderais, foi, na imaginação mitológica, figurada por uma
mulher, em cujas disposições físicas predominavam os seios, o que, diga-se de
passagem, não estava mal pensado, porque as elevações semelham essas saliências
femininas.
Ora, não consta da biografia terrena que ela fosse uma
senhora nervosa, dada a tremuras, como resultado do equilíbrio do seu
metabolismo.
E não disseram os antigos que Dona Terra era nervosa, porque
tal informação se tornaria ociosa, visto que toda a gente sabe que a Terra de
tempos a tempos sofre de tremuras. De vez em quando anda em crise, tremendo
nervinamente, espasmando-se, convulsionando-se.
Tanto que a Terra anda nervosa, cheia de tremuras, logo os
jornais e algumas emissoras não deixam de nos fazer tremer os ouvidos com o
disparate do “abalo sísmico”.
Não se desesperem os leitores nem os ouvintes. Aqui lhes
aconselho um remédio para a neurastenia que lhe provoquem erros fatais.
Observem o lado humorístico do caso. Sorriam, ponham-se mesmo a rir, porque
riso é o que merecem os anunciadores dos “abalos sísmicos”.
Filosofemos sobre o assunto, a ver se se conseguem alguns
adeptos sensatos que repilam a “abaladura sísmica”.
Como se sabe, uma das consequências da ação das forças
interiores da Terra é aquilo que o nosso povo chama com admirável propriedade -
tremor (e às vezes trumor) de terra.
Mas a linguagem apresenta gradações. E assim o que o povo diz
na sua espontaneidade não serve muita vez ao uso experimental de certos setores
da falação.
Uns furos acima da expressão “tremor de terra” temos, por
exemplo, o vocábulo “terremoto”. Aqui já se notam umas tinturas de linguagismo
teórico, pois, querendo compreender-se a razão pela qual se diz “terremoto”, em
lugar da simpleza do tremor de terra, tem de aprender-se que a palavra se
constitui com o latim “terrae motus”, isto é, movimento da terra, pois “motus”
significa movimento e “terrae” (genitivo da “terra”).
O nosso povo é um ás ou, se quiserem, um alho para afeiçoar o
latim à sua loquela. Se adrega de ouvir “terremoto”, emenda logo para
“terramoto”, pois se é a terra que se mexe, “terramoto” eis o que lhe parece
que deve ser.
Em português ao tremor de terra também se chama “abalo”.
“Abalo de terra”. Chegamos assim a mais uma forma de chamar a mesma coisa. “Tremor
de terra, abalo de terra, terremoto, terramoto” (na corrupção popular), e já
agora lembrarei “abalo telúrico”. (Telúrico significa - da terra, do latim “tellus,
telluris”, a terra na personificação poética).
Mas continuemos a subir, e mais uns furos acima temos a
linguagem dos cientistas.
Os cientistas têm a necessidade, e às vezes o luxo também, de
recorrer ao grego para nomearem o mundo dos fenómenos ou os fenómenos do mundo.
E quem diz os fenómenos pode ainda alargar a esfera
científica e meter-lhe os epifenómenos, os númenos, e outros palavrões
difíceis.
A simples observação do “tremer” da terra não contenta a
ciência. A ciência estuda, investiga, regista, compara, prevê e até, quando
pode, evita ou, então, provoca os fenómenos.
Portanto, faz-se mister criar termos que abranjam os
processos, os métodos, os recursos, as relações da atividade científica.
Ora, a preocupação científica da nomenclatura grega gerou,
segundo parece no século XIX, o vocábulo “sismo” para a designação dos
“tremores de terra”. Tremor em grego é “seismós”. Este “seismós” deu, portanto,
aos sábios o francês “séisme”, o português “sismo” e formas equivalentes.
Temos, pois, que “sismo” e derivados são vocábulos
imprescindíveis, porque na própria derivação está implícita a justificação do
seu emprego especial.
Como acabo de expor, a língua portuguesa sempre rica de
valores, possui estas cinco maneiras para nomear os tiques nervosos da Senhora
Dona Terra - tremor de terra, abalo de terra, abalo telúrico, terremoto (melhor
forma do que terramoto) e sismo.
Mas cinco formas não bastaram e surgiu uma estupenda
calinada, obstinadamente repetida em letras e sons, em penas e bocas, em prelos
e microfones - “abalo sísmico”.
É um portentoso disparate, pois em “sísmico” (do grego
“seismós”) já entra o significado de abalo.
Sendo a língua portuguesa realidade terrena, logo que a terra
anda em crise de nervos, imediatamente a expressão noticiadora e registadora
sofre em reflexo a “tremura abaladora do abalo sísmico”.
Esperem… não estarei a ficar caduco?!
Afinal, o que é que todo este arrazoado tem a ver com as
“tremuras” que abalam todo o meu Portugal?
…
E queria eu falar do “abalo” provocado pela Taxa Social
Única… da “tremura” do aumento dos descontos para a Segurança Social e Caixa
Nacional de Pensões!...
…
Não há dúvida… estou mesmo caduco!
Haverá aqui alguma analogia?
Carlos Fiúza
2 comentários:
Tal foi o abalo produzido em todos nós pela completude da destrinça de CF que nenhum ripostou fosse o que fosse.E afinal talvez haja algo a retorquir. Eu tentarei meter calinada no "abalo sísmico".
Parece verdade que as palavras mudam de sentido ao longo dos tempos e dos lugares.Umas começam por significar uma coisa e passam mais tarde a dizer algo diferente.Nuns sítios ficaram com um significado, noutros com um por vezes em nada igual ao primeiro.
Umas vezes o sentido alarga,outras encolhe.
Uma pessoa opta por começar a usar(isto acontece sobretudo na fala) a palavra "abalo" e , não querendo retirá-la,tem de prosseguir.Sentindo que a ideia fica incompleta,avança com uma palavra que esclareça e acentue a ideia. Restringe o sentido rigoroso de "sismico" mas dá uma definição forte do "abalo".
Daí resulta o "abalo sísmico".
Será esta escapatória uma saída airosa, de molde a fugir ao apodo de "erro grosseiro"?
JLM
"Abalo sísmico"
Quebrando a indiferença que se vota ao idioma, às suas virtudes, ao seu abastardamento e corrupção, à defesa e melhor compreensão que ele nos exige e merece, notam-se lá muito de rara em rara vez, afora defensores constantes, vozes que se manifestam, umas a favor, outras contra este instrumento de expressão e de arte que a Portugal coube em sorte.
E, assim, de vez em quando a nossa Língua torna-se alvo de considerações de gente mal intencionada das letras portuguesas.
No fim do tiroteio fica tudo na mesma: vandalização, destruição impune do que devera ser tido como sagrado.
E não só gente menos letrada…
Aquilino Ribeiro (como bom materialista) partia do princípio de que tudo o que teve começo terá fim. Assim,(para ele)a Língua está sujeita às vicissitudes da lei comum, portanto a uma evolução que… tem o seu extremo na morte.
Não é esta a minha visão.
Ora, se o português há de morrer, é caso para exclamar: morrer, sim, mas devagar.
Devagar e com honra, quero dizer, sem lhe apressar a morte com incompreensões de muita forma.
A evolução da Língua realiza-se na boca do povo, mas em obediência a tendências fisiológicas e psicológicas que a levam por caminhos de modificação natural, isto é, não forçada.
As línguas hoje faladas correspondentes às que se diz terem-se cadaverizado não se cadaverizaram, não, senhor.
As línguas escritas de Virgílio, de Platão, de Xenofonte também continuam vivendo na admiração de quem nas lê.
Diferentemente acontecerá ao português estragado ou abastardado dos nossos escritores (não o do JLM) que não sabem escrever: morrerá na indiferença dos nossos vindouros.
- “Entre os escombros encontrou-se um cadáver “inanimado”…
C.F.
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