01 fevereiro 2006

O elefante e o escorpião

«É a primeira vez em Portugal que um candidato presidencial ganha não porque defendesse um grande desígnio nacional, uma sociedade ou um sistema diferente, mas porque de um lado estava uma esquerda birrenta e baralhada e do outro estava um candidato determinado, cauteloso, inteligente, que soube jogar bem com as fraquezas dos adversários.
Cavaco Silva começou por se afirmar um professor de Economia, retirado da vida política e partidária, reformado do Banco de Portugal. Pontualmente deixava cair uma frase enigmática, geralmente à saída de uma conferência sobre macroeconomia. E retirava-se mais uns meses.
Quando Santana Lopes ousou avançar num congresso do PSD que o seu candidato era Cavaco Silva, pretendendo com isto ganhar tempo e credibilidade perdida, o professor desvalorizou o apoio respondendo que já não estava na vida partidária. E lá voltou a frase «Sabe, sou apenas um professor!».
Mais tarde, quando o mesmo Santana inventou um «outdoor» que mais parecia um retrato de família maoísta, com os fundadores do PSD, Cavaco ordenou a retirada do seu retrato. «Sou apenas um professor, isso pode prejudicar a minha vida académica» - dizia, lacónico.
No auge do desnorteado governo santanista, escreveu: «É preciso que os políticos incompetentes dêem lugar aos competentes!» E, tal como o bom artilheiro, Cavaco Silva apontou, disparou e bateu em retirada, pondo toda a gente a comentar e a especular sobre a frase enquanto Santana assobiava para o ar.
Quando decidiu avançar para a candidatura fê-lo o mais tarde possível, baralhando de novo tudo e todos. À direita tirou margem de manobra para uma candidatura de Paulo Portas e à esquerda deixou Sócrates sem saber quem devia avançar no PS depois das hipóteses falhadas de Guterres, Ferro e Vitorino. Alegre já era, quando Soares apareceu de surpresa no Rato: «Eu é que quero ser o presidente da junta!». Sócrates, que Soares tinha chamado de «político de plástico», deixou quebrar Alegre, o elo mais fraco.
Para a rampa de lançamento, Cavaco Silva escolheu o Centro Cultural de Belém, feito no tempo do seu «incompetente» ex-secretário de Estado Santana Lopes. Avançou com pompa, pose de Estado e com tal convicção que quem lá estava a assistir - o meu caso - saiu com a sensação de que ele já era Presidente da República. «Não sou um político profissional!» A cereja em cima do bolo! Perfeito!
«Hoje sou um homem diferente!» - disse a uma revista. E quando, no calor da luta eleitoral, o povo de esquerda alentejano o recebeu de braços abertos, Cavaco atreveu-se, cantou a «Grândola» e rematou à baliza: «O povo é quem mais ordena!» Há 10 anos teria sido uma anedota; agora foi mais um passo para a vitória.
Todos nós mudámos em 10 anos. Só os burros e os «basset hounds» é que não, por teimosia crónica.
No dia seguinte à vitória de Cavaco Silva abraçei um amigo para quem só há Deus no céu e Cavaco na terra. «Descansa!», disse-me ele, acrescentando: «O Cavaco vai ser um grande Presidente, dialogante e amigo de todos. Vocês nem vão conhecer este Cavaco!»
Já desconfiava: este Cavaco não é o do antigamente. O eleitorado foi enganado.
Agora é a versão «light», civilizada, com catalizador político - logo, menos potente -, que foi posta a votos.
Não dá para acreditar: depois do comunismo de rosto humano só nos faltava o cavaquismo-nacional-porreirismo!
A história do escorpião que o elefante deixou transportar para atravessar o rio e que a meio acabou por ferrar o paquiderme pode fazer todo o sentido aplicada ao futuro inquilino de Belém: ele não quer sinceramente «ferrar» o engenheiro Sócrates. Mas que o instinto está lá adormecido, disso ninguém duvida.
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Luiz Carvalho, Expresso

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