21 janeiro 2006

Dinâmicas corrosivas


Está provado que um dos factores que mais ou menos directamente intervêm nas dinâmicas de transformação de uma sociedade passa pelos processos de intervenção, satíricos, humorísticos e irónicos que nessa sociedade se pratiquem em oposição ao “ status quo” predominante. Manuel Frias Martins diz-nos que a história da cultura regista-os como “… dos mecanismos mais antigos e mais constantes na dialéctica evolutiva do processo cultural e social duma sociedade”. E mais á frente acrescenta que “… Estes mecanismos permitem detectar a percepção da diferença entre, por um lado, o que é um determinado estado cultural e social e, por outro, o que deveria ser”.

Poderia aqui referir uma longa lista de escritores e pensadores da cultura portuguesa para quem estes processos se tornaram temas de referência da sua obra e da sua atitude para com a sociedade do seu tempo: Refiro apenas, Gil Vicente, Nicolau Tolentino, Barbosa do Bocage e mais recentemente alguns que tenho lido como Augusto Abelaira, Alexandre O`Neil ou o cronista João Carreira Bom, todos já falecidos Isto para não lembrar a parafernália de humoristas e respectivos programa que com mais ou menos qualidade, hoje enxameiam as televisões e os jornais. E aqui que se consiga fazer a síntese sobre o que é puro lixo e a crítica mordaz mas construtiva.
Até parece que nunca esteve tanto na moda satirizar.

E assim se revela uma atitude de não conformismo com certos tipos de códigos de conduta social que serão porventura os dominantes, bem como com as justificações que os suportam, propiciando, por isso mesmo o desafio de desmontar (ou, pelo menos, pôr a nu) as contradições mais profundas que lhes subjazem.
É quase sempre na área do quotidiano que se pode encontrar matéria mais abundante para essa desmontagem, quer ao nível de juízos emitidos sobre determinados factos, quer a um nível mais geral da sua integração numa visão comummente partilhada por um grupo mais ou menos numeroso de pessoas.

Na nossa querida terra possivelmente sempre terá havido também margem para a crítica social.
Muitos não se lembram já da paródia que era o “ Julgamento do Entrudo”, ritual feito para a assistência, em noite de Carnaval pelo meu falecido avô Américo, secundado pelo ajudante Preguiça. Infelizmente não resta nada dos seus milhares de versos feitos “em tom “ de sátira e, onde comentava o que ao longo do ano via fazer e que considerava criticável.
Contava ele na altura que esta prática já vinha de trás pelo que, pelo menos a pretexto do Entrudo, a crítica terá existido na nossa “ditosa” Terra “amada”.
Tinha eu quinze anos quando participei na primeira comédia de teatro em Carrazeda orientada pela Otília Pereira e o saudoso Chaneco. O meu papel, em conjunto com o de outros, era o de fazer de guarda. Mal eu sabia como acabaram por cair mal, junto do sistema instituído do antes de 25 de Abril, estes papéis de desleixados e bêbados que, pelos vistos foram obviamente interiorizados pela GNR da altura.

E chegados, pergunto-me por fim. Qual o valor da palavra dita em tom de sátira, no presente e aqui! Falando mais uma vez pela minha experiência direi que se ela tem existido é no silencio da noite que nos percorre. Mas será ela necessária!? Poderá ser ela luz no breu da nossa existência!? Será ela acção!? Será ela arma!? Será ela meditação!? Ou será antes e apenas sombra, guerrilha, bomba e destruição!

(Até versejei sem querer).

Hélder Carvalho

1 comentário:

Administrador disse...

...é tudo.
E sobretudo a manutenção do indesejado transformado em prazer...num processo de destruição...sim. Mas destruição da própria crueldade. Por isso é impressionante ...como este ritual do "Pai da Fartura" digere e destrói a crueldade. Remetendo-a para o passado fado...e para a tolerância do presente.