28 agosto 2005

A religião e o amor ao próximo

O documento do Dr. João de Matos, sob o título genérico: “Religião - Liturgia e Essência”, pela sua profundidade e, ao mesmo tempo, clareza, traz ao debate uma temática que urge abordar, sem tabus, na actual sociedade portuguesa que é o de qual será o papel da Igreja Católica ao serviço da(s) comunidade(s).

Eis a minha achega.

Cristo, na sua missão terrena, institui uma doutrina, que consideramos perfeitamente revolucionária “deixo-vos um mandamento novo - amai-vos uns aos outros (principalmente o inimigo) como eu vos amei” (cito de cabeça). Este novo paradigma de comportamento perverte tudo o que até aí tinha sido preceituado. O instituído e o lógico seria amar o nosso amigo e combater o inimigo. Esta nova prescrição criou as bases de uma convivência harmoniosa do relacionamento humano e estabeleceu os alicerces da criação de uma sociedade pacífica, justa, igualitária e possibilitou, que a partir daí, se pudesse construir todo o pensamento humanista que teve expressão política na revolução francesa e em todas as teorias que pretenderam uma sociedade utópica.

Este “modus vivendi” de “Amar a Deus sobre todas as coisas e amar o Próximo (deliberadamente maiúsculo) como a nós mesmos”, nunca teve um resultado pleno na sociedade dos homens. Um grupo social em que todos se preocupam uns cons os outros, isto é, num hino de amor a Deus e aos homens, só corresponderá plenamente a “contextos” imaginários como os descritos na Utopia de T. Moore e, em última análise, ao Paraíso narrado nos livros religiosos. Podem apontar-se poucos exemplos terrenos e reais de convivência harmoniosa e comunitária segundo esse grande princípio. É o caso das primeiras comunidades cristãs, as formas de comunitarismo em aldeias isoladas e, se quisermos ser um pouco condescendentes, poderemos trazer também, como tipificador do conceito, as comunidades hippies… e pouco mais.

A prática da Igreja Católica a partir do momento que se torna religião de estado, maioritária, apostólica e romana e se transforma em instituição, paulatina e implacavelmente começa a distanciar-se desse princípio regulador e básico do seu articulado ideológico. A instituição católica posiciona-se numa postura de poder e toda a sua prática pressupõe a perpetuação de religião dominante e dos privilégios dos clérigos, que se mantém no alto da pirâmide social fortemente hierarquizada. A religião confunde-se com toda a organização social, o poder está sacralizado e seu dependente. Ela transforma-se num factor de dominação e impõe sacrifício e dor, em vez de contribuir para a felicidade terrena. Ela não contribui para a melhoria da vida mas constrói desigualdade e injustiça.

Durante quase toda a Idade Média condiciona toda a actividade social, económica e política. Deus está no centro de tudo. O homem reduz-se à insignificância. Os ministros da Igreja de Roma são os seus representantes e correias de transmissão do Todo-Poderoso para o simples leigo. As suas regras não podem ser contestadas. Tudo o que o clero faz tem a concordância de Deus. É absolutamente proibido qualquer tipo de contraditório e penalizado quem ousa discordar.
A sua influência perpetua-se até aos dias de hoje. Na idade Moderna essa influência é tão notória que leva a medidas extremas de alguns governantes como a do Marquês de Pombal ordenar a expulsão dos jesuítas.

Com a Reforma de Lutero opera-se uma verdadeira revolução iniciada na Europa do Norte, pondo em causa muitas das bases da instituição católica: a inefabilidade do Papa; a possibilidade dos mais poderosos atingir o Paraíso pelas bulas e bem-aventuranças que compra; a dispensa da penitência, oração e demais sacrifícios recorrendo-se ao pecúlio particular; a ostentação provocatória dos rituais; o aproveitamento mesquinho da crendice e ignorância e demais exageros.
Esta nova atitude marcou de forma indelével e duradoura o progresso social e humano dos povos do norte e do sul da Europa, que os fez partir em direcções diferentes. Aqueles com um pensamento mais liberal, prático e não alienado conseguiram atingir metas de progresso humano que se repercutem nos tempos actuais e assim eliminaram muitas das injustiças sociais. Estes, com forte influência do catolicismo, perduraram muito tempo no obscurantismo e rigidez de princípios que ajudaram ao fosso de desenvolvimento económico que ainda hoje nos separa, contribuindo assim para o crescimento da miséria humana. Este pensamento teve forte influência no progresso diferenciado das colónias, que deles estiveram dependentes. Atente-se á disparidade de desenvolvimento económico entre a América do Norte e a América Latina.

A Contra Reforma, reacção da Igreja Católica à reforma protestante, é demolidora. Aparece a Inquisição e todas as arbitrariedades consequentes, o Índex queima e proíbe muito conhecimento livresco, sufoca a criação e a evolução humanas, aumenta a complexidade dos ritos e práticas religiosos, cresce a ostentação e o luxo (o barroco e o rococó são conceitos artísticos aí inspirados), radicalizam-se os conceitos e as práticas. A Igreja fecha-se ao iluminismo nascente e nega contra as evidências que a Terra gira à volta do Sol. Cresce a intolerância e persegue-se o novo e diferente… Esta resposta forte e contundente da hierarquia católica deixou uma sombra e até uma nódoa que o tempo ainda não apagou nem dissolveu.

Durante muito tempo, a Igreja foi quase a única instituição que prestou assistência aos fracos e miseráveis. A obra de algumas ordens religiosas parece mostrar-se mui meritória. Este serviço de assistência social teve expressão nos diversos estabelecimentos como sejam os asilos, a roda, os catres, a ajuda aos carenciados e a chamada caridade cristã. Este tipo de ajuda à luz dos conceitos actuais atinge contornos que depreciam a instituição. O nobre ou mais tarde o burguês rico, sentindo-se casta superiora, apregoava a sua bondade em nome de Cristo de modo ostensivo, distribuindo as migalhas da sua farta mesa pelos miseráveis mendigos. Sossegavam desta maneira as consciências pesadas.

Salvo exemplos bem contextualizados e muito meritórios, o serviço da igreja foi substitutivo da sociedade civil, mas também tremendamente interesseiro. Ela usou, muitas vezes, a sua influência e poder para privilegiar quem lhe interessava e disponibilizava ajuda na medida das suas conveniências. Um exemplo são as muitas dádivas da Caritas Internacional que chegava às aldeias e propiciavam que o seu pároco a distribuísse de acordo com os seus humores, muitas vezes sem um critério de necessidade premente. A escolha do necesssitado não era desinteressada e recaía normalmente nos que professavam a mesma fé, sendo todos os outros repudiados e também combatidos com a recusa na solidariedade cristã. Tudo isto ajudava à perpetuação do poder e prestígio. São também estas algumas das razões do crescimento do anti-clericalismo.

Até aos dias de hoje, a Igreja tem, quantas vezes, substituído o dever do próprio Estado que com ela contratualiza diversas valências de ajuda e assim descarta-se de responsabilidades próprias.
A Igreja Católica continua a ter uma importância crescente nas chamadas Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) que são pretensamente constituídas sem finalidade lucrativa e com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre todos os indivíduos. Estas caracterizam-se ainda por prosseguirem, mediante a concessão de bens e a prestação de serviços, diversos objectivos do âmbito da Segurança Social. Além destes, também promulgam outros de âmbito da protecção na saúde, da educação e formação profissional e da promoção da habitação. Os principais propósitos incluem: apoio a crianças e jovens; apoio às famílias; protecção dos cidadãos na velhice e invalidez e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.

Só que há sempre um reverso da medalha e os não católicos esbarram nas teias de alguma “intolerância” e a possibilidade de ficarem fora do sistema.
Exemplo:
Há alguns anos, quis associar-me como "irmão" da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães. A minha ficha de inscrição foi apresentada por um membro no organismo referido. Nunca recebi qualquer resposta. No “diz que disse”, chegou-me aos ouvidos, que eu não teria o direito de associar-me à instituição por não ser católico. Se esse é um dos pré-requisitos não o preenchia e, assim não poderia claramente fazer parte da irmandade. Dou-lhes completa razão. Pelos vistos, estou diminuído perante todos aqueles que são católicos, já que o Estado também não me dá outras alternativas.
Esta é uma realidade que ainda se faz sentir em múltiplos aspectos da nossa sociedade. O ser ou não ser católico é ainda condição de estatuto e de inserção social.

Creio, pois, nas virtualidades da Igreja e no seu papel de serviço social. Mas, para isso, será necessário também um regresso à pureza do cristianismo inicial. Por outro lado, a Igreja não deve sustituir o que é dever de toda a organização social e particularmente cabe ao Estado. Conhecemos casos verdadeiramente exemplares desse serviço e brevemente deles falaremos.
Contudo, estamos convictos de que a verdadeira solução para os problemas sociais está na própria organização da sociedade. Os problemas têm solução. Alguns países de todos conhecidos acabaram com a pobreza, a indigência e as necessidades básicas dos cidadãos. Outros com práticas erradas agravaram as injustiças. Todos parecem conhecer a solução só que os egoismos e resistências várias impedem que se concretizem.
Acredito que, mais que toda a caridade cristã, a solução passa pelo progresso e devir do homem, pela justa distribuição da riqueza e por um segurança e assistência social moderna e de bases sólidas.



A Igreja de Carrazeda raramente saiu da pequenez do seu templo, não tem história de serviço à comunidade, nomeadamente aos mais desprotegidos, para além de casos muito pontuais. A construção de um salão paroquial e outra dinamização eram necessários na nossa terra e à convivência dita cristã. Num tempo em que novo pároco assume o comando da Igreja e novos padres por aí pastoreiam o rebanho de Cristo, desejo que os novos responsáveis saibam fazer o que ninguém até agora fez. Oxalá! (Palavra árabe para a expressão "Deus queira").

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