Hoje sinto-me feliz: João Lopes de Matos

Hoje sinto-me bem, feliz. E sabem porquê? Porque hoje tomei banho, comi um pão pequeno , bebi muita água e tomei café. Nem me sinto demasiado excitado nem demasiado modorrento. Estou no meu ponto de equilíbrio favorito. Há apenas na minha cabeça um pequeno zumbido a lembrar-me que não estou 100% bem, que este estado de graça não é eterno e que devo contentar-me com o que de bom sinto. Por isso, é que me custa conceber que se possa estar eterna e permanentemente feliz. Um aborrecimento, por pequeno que seja, é que nos permite saborear o bem estar.
Porque me dou bem com o banho quentinho é que começo a pôr em causa os conselhos do meu médico, com quase oitenta anos, que me diz para só me banhar de 15 em 15 dias. E diz ele que isso já é demais porque no tempo dele( de jovem, claro) lavava todo o corpinho apenas de mês a mês. E era para ele, nesse tempo, tão agradável sentir-se, no inverno, tão quentinho com a protecção que tinha por toda a pele, melhor do que o que sentem os que agora põem uma grande camada de creme em todo o corpo! Falando em camada de creme, ele sofre com o facto de já ninguém seguir os seus conselhos de substituir o creme por uma boa camada de sumo de alho, que tinha um odor magnífico, aconchegante e dava a uma taberna, por exemplo, um cheiro unificador, fraterno, de todos os seres humanos que, em conjunto, bebiam um copinho do bom vinho que nesse tempo havia e que hoje já não se encontra.
O meu médico é, na realidade, salutarmente, amante do passado e sente pena de não ter vivido mais atrás ,no século XIX, pelo menos. No tempo dele, aquilo é que era boa alimentação: logo de manhã, comia uma boa malga de sopas misturadas com vinho e com três gemas de ovo, um bom naco de chouriço e, a terminar, um grandinho e cheiinho copo de aguardente. Isso é que era uma alimentação saudável e fortalecedora.
Trabalhar depois de sol a sol já nada custava. E à noite era um regalo dormir num óptimo colchão de palha, onde , no meio, se juntavam, bem unidos, marido e mulher, num prazer e odor intensos, a que davam mais alegria os bichinhos queridos, caseiros, que com ambos dormiam.
Esta felicidade toda começo eu agora a pô-la em causa só porque tomei um banho de chuveiro!
Como é que um nada me pode fazer renegar toda a felicidade passada? Não entendo. Porque é que o que serviu para gerações e gerações dos nossos antepassados( quanto aos portugueses, logo desde o início da nacionalidade) pode ser posto em causa por um banhito de chuveiro? Só posso estar louco e sem falar que com este acto ridículo desrespeito vilmente o modo de vida de todos aqueles que já morreram( e que não são poucos).
Como é que uma minoria( nós, os actualmente viventes) pode abandonar os hábitos e tradições da grande maioria( todos os que já morreram)?
( Este texto não respeita o acordo ortográfico para poder respeitar os que já se foram – ao menos nisso, respeitemo-los - )

João Lopes de Matos