07 março 2014

Impérios do espírito - Sinfonia em Voz: Carlos Fiúza

Ainda adolescente, durante umas férias de verão, lá consegui convencer os meus Pais a deixarem-me partir à “descoberta do Norte”.
Era tido como um “puto responsável”, aluno acima da média, pelo que o meu Pai (mais do que a minha Mãe - avessa a abrir as “asas”) lá me deixou “viver a experiência de toda uma vida”. De motorizada (era uma Famel-Foguetão), e de tenda na mochila, lá fui visitar, durante mais de um mês, aqueles sítios onde viveu Camilo. Andei por aquelas terras onde, no dizer do Autor de “A Bruxa do Monte Córdova”, vive “o mais clássico povo de Portugal”.
Na mochila (além da tenda) levava a realidade desta afirmação, desta confissão do Mestre: “Eu leio muito pelo dicionário inédito do povo daquelas províncias, que sabe a língua portuguesa como Fr. Luís de Sousa”.
Foi o começo de uma “paixão” (sempre incentivada por meu Pai, um defensor “acérrimo” da Língua pátria) pelas expressões populares.
Já adulto, com o decorrer dos anos, mais e mais cheguei à conclusão que o dito de Camilo não significa aceitação incondicional ou emprego cego de palavras e expressões do povo. Cumpre avaliar o que constitua, na escrita cuidada, deturpação morfológica, como convém não esquecer que se não aconselham na escrita de arte desmandos que se costumam chamar de gíria.
Se aqui ou além o povo diz “famila” ou “família”, vai agora a gente pegar a dizer assim, e não família? Claro que não. Mas, se o povo diz “Felipe”, que mal vai em dizermos e escrevermos Felipe, se esta pronúncia vem de longe, como o comprova a tradição da escrita, e se obedece a uma tendência fonética?
Se o povo diz “pedir para”, e se eu vejo que Herculano escreveu no “Eurico” - “pediu para falar a sós” - que me importa a mim que se critique a construção “pedir para”?
E que assim não lêssemos em Mestres da Língua?!...
Nunca se ouviu o povo dizer, portuguesmente, “pedir para ir”, e semelhantemente?
À minha análise lógica não repugna o dizer ou escrever “peço-te para vires cá hoje”.
Os gramáticos o que têm é de registar a dicção popular, pois já está apadrinhada pelas melhores penas da arte de escrever.
Injusto é imaginar, ou afirmar que, se alguém se dedicar com afinco ao estudo da linguagem do nosso povo, vai em tal estudo… “por mares nunca de antes navegados”.
É cioso talvez referir que os falares do povo não estão virgens do contacto investigador de homens de estudo portugueses: os nossos lexicógrafos, antigos e modernos, registaram palavras e expressões populares; foneticistas de valor estudaram pormenores da loquela do povo; vários estudiosos colheram com solicitude dicções dialetais; competentes filólogos houve já, também, que se entregaram a trabalhos regionais da língua; já temos tido artistas que cantaram com mestria a nossa língua, “na boca livre do povo”, como um deles expressivamente afirmou.
São muitos e muitos, porém, os aspetos por que a linguagem popular deve de ser encarada. E há um aspeto que pouco ou quase nada tem interessado os estudiosos do idioma português, e já direi qual: a comparação da expressão popular com a expressão dos nossos escritores. Ora, no estudo comparado da linguagem popular e da linguagem dos escritores não extravagantes está não só o melhor remédio para enfermidades de expressão, mas boa escola de compreensiva Filologia. Em tal comparação levantam-se e resolvem-se problemas de alto interesse fonético, lexicográfico, morfológico, sintáxico, semântico, estilístico e, por conseguinte, vernáculo (tomada esta palavra em devida aceção).
No povo está a melhor defesa da língua. E na comparação da linguagem popular com a dos nossos escritores vernáculos estará, a meu ver, não apenas excelente escola de digna arte literária, mas ainda inesgotável tesouro de investigação filológica.
Quem escreve estas linhas ganhou desde cedo amor, paixão até, pelo estudo do idioma português. Limitou-se esse estudo, aí pelos catorze anos, ao livro, ao documento escrito. Nos chamados bons autores gostou primeiro as maravilhas da língua portuguesa. Quando, porém, começou a ouvir falar o povo, compreendeu melhor essas maravilhas. Compreendeu isto, sentiu isto: entre o povo e aqueles escritores que preferem a naturalidade da sua fala às elegâncias postiças da literatice existe um liame forte… o liame da vernaculidade.
Talvez que a vernaculidade assim compreendida pareça ao escritor de tendências anárquicas em expressão uma espécie de caturrice ou de atrasamento literário. E a difícil mas teórico filólogo se apresentará acaso fora do campo da filologia o estudo comparativo entre a linguagem do povo e a dos escritores dignos deste nome.
Não curarei, porém, de indagar se esta modalidade de estudo da língua agradará ou desagradará a Gregos e a Troianos. Estou convencido que interessa à língua da minha pátria, e isso me basta.
A linguagem do povo, grande esteio da nacionalidade, não se pode contentar com elogios superficiais, com “gabanços” fugidios, com frases-feitas qual esta assim, por exemplo: “o povo é que faz a língua”.
Com isto quer-se dizer em geral ao significar pertencer ao povo a função modificadora das línguas, por sua natureza mudáveis ou, antes, evolutivas.
Não me cansarei, todavia, de chamar a atenção de quem repita aquela sentença para a necessária destrinça entre o “fazer-se” uma língua com regularidade e o fazer-se ou, mais propriamente, o “desfazer-se” essa língua por meio de destruições de vária espécie.
Já escrevi noutro lugar:
“É o povo o fautor principal das modificações sofridas pelos idiomas tempos em fora… O povo que se expressa em fala portuguesa, inconscientemente se encarregará de lhe comunicar vida, e, portanto, alteração. Alterar, porém, não é destruir”.
Acrescentarei, ainda, que a verdade dessa afirmação - “o povo é que faz a língua” - depende também da exatidão com que tomemos a noção de povo como agente de alteração da linguagem.
Na verdade, se por povo se entenderem aquelas gentes das províncias que quase nunca recebem a influência nociva dos despautérios e “mascavações” de certa pseudocultura das cidades, então, estou de acordo. Porém, se englobarmos no povo aquela multidão de semianalfabetos que imita o erro do telegrama noticioso, a monstruosidade da redação do folhetim, o abastardamento do livro mal traduzido e coisas semelhantes, neste caso, discordo absolutamente.
Há, todavia, por aí uns literatos e uns escrevedores que, para se desculparem das calinadas e dos servilismos bárbaros, exclamam sofisticamente: “o povo é que faz a língua”.
Cada vez me convenço mais de que o que está em crise é aquilo a que chamarei o sentimento do idioma.
Realidades, bem lamentáveis realidades, confirmam que a Língua portuguesa, que falaram e falam milhões de pessoas, instrumento de respeitável literatura, de vários modos a malfere quem não na compreende no que ela tem de essencial, de fundamental, de característico e, por conseguinte, de perene.
Quereis uma explicação? Pois já agora dá-la-ei com um paralelo, e vá isto para desenfado.
Em certo jornal vejo artigo literário (?), no qual alguém para “fazer estilo” redigiu:
“A chuva caía emprestando à janela uma cortina de gotas cintilantes”.
Quem haverá aí capaz de se encantar com esta aberração estilística, verdadeiro símbolo do mau gosto, apurado nas traduções de fancaria?
Vejamos agora, por contraste, como o povo (ainda que possa parecer rude) sabe descrever, com palavras puramente nossas, aspetos vários da natureza.
Basta um exemplo:
“A neve hoje não castigava, mas ontem… Deus do Céu!”
Aprecie-se como o falar simples desta mulher de Vermoil, é muito mais artístico na sua imagem de inconsciente estilo do que a pretensiosa escrevedora que teve a audácia de dizer… que a chuva emprestava à janela uma cortina de gotas.

Nem sempre virgem do contacto dos erros das cidades, o povo faz a língua, é bem verdade, mas conservando-lhe sempre as características essenciais.
Aquele Jacinto, que Eça de Queirós magistralmente fez regressar das cidades às serras, sentia “o ar fino e puro entrar-lhe na alma, e na alma espalhar-lhe alegria e força”.
O mesmo precisamos para a linguagem!

O sentimento de pátria é eterno…
… E às pátrias distingue-as as Línguas!



Carlos Fiúza

5 comentários:

Anónimo disse...

É muito agradável, embora dê muito trabalho, lê-lo. Eu, para conseguir lê-lo mais devagar e com mais atenção, estou ao mesmo tempo a ouvir uma mui sonora guitarra espanhola( cúmulo do anti portuguesismo, juntar a língua portuguesa com um instrumento espanhol). Quedo-me encantado com a sua explanação e sinto a tentação quase irreprimível de em tudo lhe dar razão. Só que tenho pelo princípio do contraditório um tal apreço que, ainda que a contragosto, não posso deixar de lhe opor algumas objecções. Para já, não comungo desse seu amor pelo linguajar do que chama povo. Reconheço( não leve muito a sério o que eu penso porque tenho em tudo mais dúvidas que certezas, dúvidas provocadas acima de tudo por ignorância)que as línguas resultam das deturpações e inovações das populações e não tanto do linguajar dos eruditos. No entanto, há uns tempos já(200 anos?)acho que os que sabem português o aprendem nas leituras que fazem e no falar que ouvem dos conhecedores da língua. Eu, quando penso no pouco que aprendi, vejo sempre à minha frente os livros que li ( Camilo, Herculano, Garrett, Eça, etc,etc.e todos os mais de diversa índole, desde os oficiais de leitura aos científicos) e as pessoas com alguma cultura com quem lidei. Infelizmente, muitos dos meus semelhantes falam e escrevem tão pessimamente que tive mesmo de lutar por não me deixar influenciar por imitação. - - Julgo que sem a burilagem dos grandes escritores pouco se aproveitaria daquilo que o povo diz ou escreve.
Encaixe o melhor possível o meu atrevimento, respire fundo e responda apenas após o descanso necessário para responder com a benevolência que é seu apanágio.
JLM

Anónimo disse...

.
Diz o meu Amigo:

“… sinto a tentação quase irreprimível de em tudo lhe dar razão. Só que tenho pelo princípio do contraditório um tal apreço que, ainda que a contragosto, não posso deixar de lhe opor algumas objecções”.

Verdadeiramente, outra coisa não seria de esperar da sua pena.
O meu Amigo (por temperamento) tem sempre de contraditar… e isso é bom!
Obriga o interlocutor a debruçar-se sobre o que escreveu… repensando a sua linha de pensamento.

Afirma:
“Reconheço… que as línguas resultam das deturpações e inovações das populações e não tanto do linguajar dos eruditos.”
Nada tenho a contraditar. Estamos na mesma “linha” dos acontecimentos.

Afirmei:
“Na verdade, se por povo se entenderem aquelas gentes das províncias que quase nunca recebem a influência nociva dos despautérios e “mascavações” de certa pseudocultura das cidades, então, estou de acordo. Porém, se englobarmos no povo aquela multidão de semianalfabetos que imita o erro do telegrama noticioso, a monstruosidade da redação do folhetim, o abastardamento do livro mal traduzido e coisas semelhantes, neste caso, discordo absolutamente.”

Poderá o JLM objetar:
- Nesse caso, temos de “arrasar” a cidade, para manter a pureza imaculada das falas do campo…
E eu respondo:
- Arrasar a cidade, não; mas destruir o vício da cidade é higiene útil, precisa e possível.

Bem sei… O comboio, a rádio, a televisão vão levando a cidade ao campo, e o povo irá perdendo aquele poder de conservação da pureza idiomática. Mas o sentimento de pátria é eterno.

O que pretendo significar é:
O povo, ainda não viciado do mau escrever das cidades, é o melhor guarda desse tesouro, que é a nossa língua.
“… o povo faz a língua, é bem verdade, mas conservando-lhe sempre as características essenciais”

Assim os escritores vernáculos, compreendendo esta verdade, procurassem purificar suas penas do contacto de estrangeirices no ar puro da linguagem popular.
Assim todos os cultos ganhassem no amor à fala vernácula aquilo que perdem no imitar pouco vantajoso de jeitos e trejeitos exóticos.

“Eu, quando penso no pouco que aprendi, vejo sempre à minha frente os livros que li (Camilo, Herculano, Garrett, Eça, etc., etc)…”

Felizmente para si … o seu saber foi bebido em penas ilustres e não nessa multidão de semianalfabetos que imita o erro do telegrama noticioso, a monstruosidade da redação do folhetim, o abastardamento do livro mal traduzido.


CF

Fernando Gouveia disse...

Meu caro Carlos Fiúza:
Há algum tempo que não lia artigos seus, que me dão sempre imenso prazer. Diz o CF:

"Na verdade, se por povo se entenderem aquelas gentes das províncias que quase nunca recebem a influência nociva dos despautérios e “mascavações” de certa pseudocultura das cidades, então, estou de acordo. Porém, se englobarmos no povo aquela multidão de semianalfabetos que imita o erro do telegrama noticioso, a monstruosidade da redação do folhetim, o abastardamento do livro mal traduzido e coisas semelhantes, neste caso, discordo absolutamente.

Há, todavia, por aí uns literatos e uns escrevedores que, para se desculparem das calinadas e dos servilismos bárbaros, exclamam sofisticamente: “o povo é que faz a língua”.

Tem o meu amigo toda a razão. Ao longo da minha vida profissional deparei frequentemente com "sumidades" que justificavam as suas próprias asneiras com a capa protectora do povo. Outras vezes, caíam no erro contrário, classificando como plebeísmos determinadas expressões vernáculas que ofendiam o novoriquismo do tal linguajar do programa brejeiro ou da notícia escrita à pressa. Imagine que uma dessas sunidades chegou a condenar-me, como provincianismo, o uso da segunda pessoa do plural dos verbos, insistindo em que o correcto seria dizer, por exemplo, "vocês fazem isto", em ves de "vós fazeis isto", num contexto em que se tratava os interlocutores individuais por "tu". Bem lhe expliquei que ao dizer "vocês fazem isto" quando tratava os interlocutores individualmente na segunda pessoa, estava a modificar a forma de tratamento. Qual quê?! Insistia em que "vós fazes isto" era um provincianismo irremediável, a proscrever numa linguagem decente.
Bom, tudo isto para lhe dizer do meu acordo quanto ao princípio geral de que são os locutores que fazem a língua, com a reserva, obviamente, de que esta afirmação implica uma adequada competência na língua, não podendo a corruptela grosseira instituir-se em regra. Haja sempre em vista que o português evoluiu a partir do baixo latim, ou latim popular.

Deixe-me apenas fazer uma ressalva para certas linguagens literárias que às vezes ofendem os puristas da língua. Um texto literário não é uma prova de exame da língua. Sendo a literatura uma forma de arte, nela cabem certamente artifícios e criações que se afastam duma correcta expressão linguística. No contexto da frase literária, tais desvios procuram, por exemplo, seguir a coerência das personagens ou das situações ficcionadas, reproduzir estados de espírito perturbados ou certos encadeamentos de ideias, ou simplesmente realçar (por exemplo através de repetições exageradas) determinados estados de espírito das personagens ou do narrador.
Lembro-me de que, numa das últimas entrevistas que vi do saudoso José Cardoso Pires, ele respondeu a uma questão do entrevistador acerca das regras de gramática que, para se permitir violar as regras de gramática, um escritor tinha de as conhecer muito bem.

Termino com a sua frase final "… E às pátrias distingue-as as Línguas!". Que bela frase, e quão verdadeira. Já aqui afirmámos, na discussão do tema da identidade nacional que o JAM em boa hora lançou, que a língua é seguramente um dos principais traços identitários de um povo. Acabei de regressar de um território chinês onde a presença portuguesa durou quase cinco séculos (Macau). É impossível ficar insensível aos símbolos dessa presença pátria, como as igrejas, edifícios civis, fortalezas, calçadas, jardins estátuas. Mas o que mais aconchega a nossa devoção é poder ler em português todas as placas de rua, nomes de estabelecimentos oficiais e particulares e até editais de justiça. Não sei por quanto tempo ainda, mas pode crer que isso é mais reconfortante do que mais umas décimas na balança comercial.
Um abraço.
ps: para os leitores, reafirmo a minha rebeldia ao acordo ortográfico de 1990, que só respeito no contexto de trabalhos profissionais, por dever de ofício.

Anónimo disse...


Meu Caro Fernando Gouveia

Foi um prazer ler o seu comentário ao meu escrito.
Em cada intervenção, o meu Amigo põe a fasquia mais e mais alta.
Parabéns pelos seus vastos conhecimentos.

Do seu escrito, repesco estas afirmações:

“… Não podendo a corruptela grosseira instituir-se em regra.”

E mais à frente:

“Um texto literário não é uma prova de exame da língua. Sendo a literatura uma forma de arte, nela cabem certamente artifícios e criações que se afastam duma correcta expressão linguística. No contexto da frase literária, tais desvios procuram, por exemplo, seguir a coerência das personagens ou das situações ficcionadas, reproduzir estados de espírito perturbados ou certos encadeamentos de ideias, ou simplesmente realçar (por exemplo através de repetições exageradas) determinados estados de espírito das personagens ou do narrador.”

Completamente de acordo:
- nem a corruptela grosseira se pode instituir em regra,nem
- um testo literário deve ser considerado uma prova de exame!

Permita-me o “desabafo”:
- corruptela, não;
- texto de exame, antes fosse!

Como bem apontava Mestre José Cardoso Pires: “para violar as regras da gramática, um escritor tem de as conhecer muito bem”.

Infelizmente, não é o que acontece as mais das vezes!

"Sumidades" como as que aponta... dispensam-se!

Obrigado
Abraço

CF

mc disse...

Caro amigo José Mesquita

Torço para que nenhum espirito mau o tenha prejudicado!

Aliás , acredito que nenhum espírito mau tem capacidade para isso!!!


Acredito que este tema do CF possa exigir uma análise profunda, acompanhada de meditação transcendental!

Não acredito que algum vírus " já luminoso-modernista" o faça desistir

o Zé mesquita não desiste!!! Acompanha!