Numa tentativa de se clarificar a noção de identidade
nacional apresentam-se três exemplos que se consideram diferentes perspetivas
de abordar a sua conceção, no duplo sentido da sua criação e compreensão. São
eles: a nacionalidade, a concetualização do sentimento de pátria e a pertença a
um estado.
O primeiro reporta ao conceito de nacionalidade. Na
sociedade antiga os vínculos de ligação, muito mais que a um país e a um
continente, eram com o senhor da terra e à comunidade a que se pertencia. Conta-se
o episódio do rei D. Luís, que, ao questionar um conjunto de pescadores a bordo
de um barco de pesca se eram portugueses, surpreendeu-o a resposta: “Não meu
senhor, nós somos da Póvoa de Varzim!”. Mais de trezentos anos passados da
publicação d`Os Lusíadas, um grupo de pescadores, aqui podendo representar, à
altura, a larga maioria da população iletrada do país não tinha consciência da
pertença ao estado português. O seu vínculo territorial ficava-se pelo espaço
de nascimento, isto é, a naturalidade e o seu horizonte espacial alargava-se a
algumas milhas de oceano que constituíam a “courela” do seu sustento. Muito
mais que a nacionalidade, importava a naturalidade. José Mattoso comunga desta
conceção: pátria, para um camponês ou um pescador era a sua aldeia, a sua
quinta, o seu senhor, o terreno que agricultava ou o mar onde pescava. O
vínculo identitário dos aldeãos e camponeses era com o senhor da terra e a
comunidade em que se inseria. E assim seria até ao liberalismo e ao
início da primeira república.
Com o desenvolvimento dos meios de transportes, a difusão da
imprensa, o início da escolaridade obrigatória, as grandes comemorações
coletivas dos feitos nacionais, a celebração dos centenários: morte de Camões
(1880), Pombal (1882), Vasco da Gama (1998), Afonso de Albuquerque (1915) e
Magalhães (1921), inicia-se a massificação do conceito de identidade nacional.
O segundo exemplo refere-se ao sentimento patriótico que
teve como modelo a ideologia do Estado Novo. Desde os bancos da chamada Escola
Primária, se inculcava o orgulho de ser português a todas as crianças,
sugerindo a natureza do território, a sacralidade, a sua inviolabilidade e
venerabilidade.
Menino, sabes o que é a Pátria?
A Pátria é a terra em que nascemos, a terra em que
nasceram os nossos pais e muitas gerações de portugueses como nós.
É a nossa Pátria todo o território sagrado que D. Afonso Henriques começou a talhar para a Nação Portuguesa, que tantos heróis defenderam como o seu sangue ou alargaram com sacrifício de suas vidas. É a terra em que viveram e agora repousam esses heróis, a par de santos e de sábios, de escritores e de artistas geniais. A Pátria é a mãe de nós todos os que já se foram, os que vivemos e os que depois de nós hão de vir... (Livro de Leitura da 3ª Classe)
É a nossa Pátria todo o território sagrado que D. Afonso Henriques começou a talhar para a Nação Portuguesa, que tantos heróis defenderam como o seu sangue ou alargaram com sacrifício de suas vidas. É a terra em que viveram e agora repousam esses heróis, a par de santos e de sábios, de escritores e de artistas geniais. A Pátria é a mãe de nós todos os que já se foram, os que vivemos e os que depois de nós hão de vir... (Livro de Leitura da 3ª Classe)
A identidade era um ato sagrado de amor incondicional, de
defesa do solo sagrado e eterno, nem que fosse em troco da própria vida, os
feitos dos antepassados deveriam inflamar no coração dos aqui nascidos e modelar
comportamentos e virtudes.
Atualmente, o conceito está associado a ser ou não cidadão
nacional. Para a administração do país, o que distingue os portugueses dos
estrangeiros é a posse ou não do bilhete de identidade ou cartão de cidadão
independentemente da religião, língua, raça, pensamento… O artigo 4.º da
Constituição Portuguesa estipula: “São cidadãos portugueses, todos aqueles que
como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional”. O
princípio básico da nacionalidade portuguesa é o ius sanguinis (direito
de sangue), ou seja, é cidadão, o indivíduo filho de pai português ou mãe
portuguesa. Em alguns casos específicos, tal direito é estendido aos netos.
Pode ainda adquirir-se a nacionalidade pelo chamado ius solis (o direito
ao solo), instituído pelo casamento e residência há mais de seis anos, ou mais
recentemente, como parece querer institucionalizar-se pela pressão dos
interesses económicos, pela aquisição monetária ou investimento em solo
português.
(a seguir nação, estado e pátria)
10 comentários:
caro José Mesquita
só é pena que este conceito de identidade nacional seja quase uma específicidade "nossa" e não extensiva à Espanha, França, Inglaterra, Alemanha , Republica Checa... etc etc ... Angola, Guiné, Brasil ... etc.. etc.............................
Aguardo a continuação , felicitando-o por recordar o que é um povo , o que é a memória e o que é uma razão da nossa existencia... embora o ideal fosse todo um mundo um só povo
abraço
abraço e bom ano
Penso ser este um conceito que pode estender-se a todos os países.
Compreendo-o, porém se fôssemos todos um mesmo povo, este mundo não tinha muita graça.
Bom ano também para si. Abraço.
nem muita graça nem muita desgraça..
seria uma monotonia , pois graça é ausencia de desgraça ou vice versa
abraço
Caro José Alegre Mesquita:
Antes de mais, votos de Bom Ano de 2014.
Algumas notas ao seu artigo sobre a identidade nacional. Começo por afirmar, como refere na resposta anterior, que a questão da identidade se coloca em todos os países. Aionda há dois anos, em França, o simples evocar dessa questão fez correr rios de tinta e ateou polémicas violentas entre o poder e a oposição, imaginando-se que, por detrás do pretexto, haveria a intenção de discutir problemas de imigração, muito mais do que identidades.
As três perspectivas que focou (identidade com a terra próxima, com a comunidade; aquisição de uma consciência de comunidade pela celebração de centenários de pessoas de referência ou, já agora, de acontecimentos de referência; e cidadania legal), são relevantes, mas, a meu ver, não completam o conceito. Podemos, no entanto, extrair delas elementos que seguramente contribuem para a formação da identidade.
A par do conceito de identidade, tem-se desenvolvido nos campos da demografia e da sociologia o conceito de pertença. Este conceito pretende responder a uma questão simples: em que condições uma determinada pessoa ou grupo de pessoas passam a sentir uma terra como a sua terra?
Mas este conceito parece mais restrito que a questão da identidade nacional, e tem mais que ver com a integração de populações de origem diversa que, após algum tempo de vivência em comum, sentem de algum modo aquilo a que já Cícero se referia com o adágio "ubi bene ibi patria".
Penso que a identidade nacional integra elementos geográficos, históricos e psicológicos: incluo entre os primeiros o território onde se nasce, cresce e vive e onde eventualmente se espera morrer, o local onde nasceram os antepassados, onde há proxinidade com outras famílias aparentadas ou não; entre os elementos históricos, a própria história vivida, a consciência da história comum (relembrada pelas celebrações a que se referiu e pelo próprio sistema de ensino), os usos e costumes e as tradições; Entre os elementos psicológicos há seguramente um pouco do sentimento de pertença, da ligação a um território ou a um local preciso, as memórias individuais e memórias transmitidas de geração em geração. Além disso, parece-me que a língua desempenha na consciência da identidade um papel fundamental. Já aqui se discutiu a questão da língua como forma especial de ver o mundo. Essa forma comum de ver o mundo faz seguramente parte da identidade. E é esse um elemento que imediatamente nos interpela quando, longe da terra, ouvimos alguém falar a nossa língua.
Amigo Fernando Gouveia:
Muito obrigado pelo seu comentário.
Este primeiro escrito foi o lançamento do tema que penso ter grande atualidade. Os três primeiros exemplos que enuncio e transportam os conceitos de nacionalidade, patriotismo e cidadania pretendem servir para desbloquear uma discussão que tem de ser feita entre nós e na sociedade portuguesa. Claro que o conceito de identidade é muito mais abrangente, complexo e, essencialmente datado. O próximo escrito sobre nação, estado e pátria, quiçá ajude a esclarecer o meu propósito, ou talvez não...
A questão da língua, como bem disse, é essencial nesta temática porque ela é também o principal espelho do devir cultural, sociológico, histórico e normativo do país e é um elemento agregador das nações.
Gostaria muito de contar com a sua colaboração neste empreendimento que agora inicio no blogue, mas como é claro, já objeto de minhas reflexões há cerca de dois anos. Muito obrigado.
Meus Caros,
- José Mesquita
- Fernando Gouveia
Muito interessante o tema abordado por JAM.
Espero a continuação para dar a minha opinião.
Também interessante é a resposta de FG.
Bem articulada, lúcida, focando pontos de muito interesse.
Como amante de tudo o que diga respeito à "raça", vou estar atento ao desenrolar dos temas propostos.
Voltarei.
CF
Fernando Gouveia tocou num ponto fulcral, na verdadeira chave identitária de um povo: A LÍNGUA!
Espero pela continuação deste trabalho de fôlego com que o nosso amigo José Mesquita nos pretende presentear!
Aproveito para desejar aos outros comentadores ilustres e amigos, votos sinceros de um Novo Ano pleno de saúde e sucesso!
HR
Caro JAM: Há muito tempo que tenho andado desligado deste seu tema, embora ele não me seja totalmente estranho.
Parece-me, no entanto, que, no seu texto, não é feita uma destrinça correta entre o "jus sanguinis" e o " jus soli". É que, ao contrário do que parece constar do texto,estes princípios estão em pé de igualdade na fundamentação teórica da atribuição da nacionalidade. Um sistema legal pode dar mais importância ao "jus soli" e um outro ao "jus sanguinis". O segundo atribui a nacionalidade, em princípio, aos filhos de um nacional. O segundo atribui a nacionalidade, em princípio, aos que nasceram num determinado território, independentemente da sua ascendência.
JLM
Caríssimo JLM:
Muito obrigado pela sua participação e pelas achegas. Eu plasmei o que diz a Constituição Portuguesa e esses dois princípios, tem razão, estarão em pé de igualdade no nosso país. Não serei muito claro, porém se o texto não o afirma, também não o nega. Os dois direitos têm sido usados pelos estados conforme as conveniências de momento, como exemplo, em Israel o ius sanguinis foi o direito prevalecennte na aquisição da nacionalidade, enquanto ius solis é bastante limitado pelas razões conhecidas.
Em igualdade, no nosso país, talvez não. Mas deixe lá. Pareceu-me ter dado menor importância ao jus soli, em abstrato.
JLM
Enviar um comentário