21 novembro 2013

“Terra Parda” - um livro a (re)ler: Carlos Fiúza

Há em todas as línguas umas palavras muito úteis, muito serviçais, verdadeiros paus para toda a obra.
São os chamados verbos auxiliares. Dois entre eles constituem uma espécie de coluna-vertebral de toda a dicção.
De facto, ser e ter são dois verbos que servem tudo, servem para tudo e servem de tudo.
“To be or not to be - that is the question!
Este começo do monólogo de Hamlet de Shakespeare, se refere a situação que põe em jogo a própria existência, não menos serve para traduzir a verdade de, formalmente, quase tudo se poder estruturar no verbo ser.
Ter ou não ter - eis outro dilema que resume em grande parte a mecânica verbal.
Ser e ter são, pois, dois verbos que andam constantemente na expressão.

Em Hélder Rodrigues há sempre a variedade verbal, que lhe vem do facto de ir buscar principalmente ao falar vivo do povo a simplicidade real da sua prosa.
“Terra Parda” é um exemplo perfeito de “figuração” na conjugação desses verbos.
Os protagonistas dos seus contos (homens e mulheres) são pessoas simples e rudes, e que tiveram unicamente por berço as agrestes fragas.
Em toda a perfiguração da sua vida moral vamos encontrar semelhanças com o mundo físico.

“… Home, bai lá… ai! Olha, mais dores… ou bem no digo”.

Um dos aspetos mais importantes da linguagem de “Terra Parda” é o seu estudo relacionado com o ambiente em que vivem as pessoas.
Quando nos deparamos a observar palavras, locuções, ditos, anexins e vários outros elementos da sua expressão e quando não nos esquecemos de reparar na influência da vida em todos os cambiantes do falar e escrever desses protagonistas, surpreendemos, com certeza, um reflexo do Viver no Dizer.

“… Um pouco mais acima, os vinhedos pareciam longos cabelos de mulher penteados e esticados para trás, às tranças, de tão bem tratados pelas encostas a cabo, num mar pintado de verde”.

Para o Autor de “Terra Parda”, os objetos da visão do espírito são as ideias, tanto assim que a palavra ideia vem da raiz id, que significa ver.
A ideia é a representação no entendimento.
Ora, como a linguagem é o conjunto de sinais com que se podem externar as visões do espírito, segue-se que, em Hélder Rodrigues, a expressão dos homens reflete o modo como eles vêm o mundo.
E como é que os homens vêm o mundo? Muitas vezes, vêm-no à sua imagem e semelhança.

“… Aqui vive-se do pão que nasce das próprias mãos, da horta verdejante e do bom vinho das carcomidas cepas que ano após ano se vão renovando como que por milagre. Tudo à força de enxada e charrua, até o suor se transformar em sangue e uma dor persistente que ninguém consegue explicar”.

“Terra Parda” diz-nos que onde se pode compreender, em toda a simplicidade, a visão humana do mundo fotografado na linguagem é, não só na linguagem dos primitivos, mas principalmente na boca das crianças, porque então, se vê melhor como os ditos espontâneos traduzem que tudo quanto se observa, e não se sabe explicar, é interpretado à maneira comparativa.

“… É o garrotilho! Tem que ter paciência…”;
“… A chuva, entretanto, voltava a cair e a fazer-se ouvir nos vidros da janela, tornando mais pesada a noite e prolongando aquela decisão de vida ou de morte”;
“… Começava a romper a luz alva do novo dia, quando o menino começou a mexer-se entre os braços do progenitor. Depois abriu finalmente os olhitos à claridade do quarto, agarrou-se-lhe ao pescoço e murmurou, na sua vozinha débil e doce:

Pai, quê fajêr óó!”.

O curso dos conhecimentos da vida, o acaso, o inesperado ou o esperado dos acontecimentos, o receado e o desejado, tudo enfim que compõe o tecido da nossa existência precisa de representar-se materialmente ao nosso espírito.
Em “Terra Parda” as palavras, ainda que nomeando coisas externas ao homem, traduzem, assim, no cerne do seu significado, muito da visão humana que o seu Autor tem do Mundo, muito do atuar à maneira humana.

Sendo o fim essencial da expressão o comunicar, o traduzir o que se sabe, se pensa ou se sente, atraiçoa a Arte quem por insuficiência ou demasia de termos se exprime.
Pelo contrário, serve a Arte da Expressão, e compreende-a, aquele que traduz com exatidão, com fidelidade o pensamento, o sentimento.

Em “Terra Parda”, Hélder Rodrigues deixa-nos uma lição:
- a naturalidade na Arte de escrever, resistindo ao tempo, é a mais bela flor de qualquer estilo.

“… Levava com ele uma lágrima de revolta e de esperança, numa luta que ninguém conseguia ver.”


Carlos Fiúza

5 comentários:

Anónimo disse...

Os meus sinceros agradecimentos ao amigo Carlos Fiúza, pela sua douta apreciação literária ao meu livro de contos "TERRA PARDA", recentemente apresentado ao público na Feira do Livro de Carrazeda. O livro mantém-se à venda na Papelaria Horizonte, Rua Luís de Camões, em Carrazeda de Ansiães (para além de Mirandela, Bragança, Macedo de Cavaleiros, Porto e Lisboa).

HR

Fernando Gouveia disse...

Caro Carlos Fiúza:
Que bom relê-lo, e logo a propósito do mais recente livro do Hélder Rodrigues "Terra Parda", a cuja apresentação tive o privilégio de assistir na feira do livro que decorreu há duas semanas em Carrazeda de Ansiães.
As minhas deslocações contínuas nos últimos dois meses não me permitiram ainda ler o livro, que então adquiri, com uma cordial dedicatória do autor. Mas já conhecia a sua escrita de publicações anteriores, pelo que posso corroborar (ou aderir a)a sua análise da escrita do HR.
Há uma afirmação sua que me é particularmente cara:

"...como a linguagem é o conjunto de sinais com que se podem externar as visões do espírito, segue-se que, em Hélder Rodrigues, a expressão dos homens reflete o modo como eles vêm o mundo.
E como é que os homens vêm o mundo? Muitas vezes, vêm-no à sua imagem e semelhança."

Penso que esta sua afirmação, sendo certeira no que se refere à linguagem das personagens de HR, o é igualmente numa boa parte dos escritores transmontanos, a começar pelo Torga, cuja obra é uma espécie de arquitexto de todos. Mas antes dele, já em Trindade Coelho, por exemplo, se poderia ver essa adequação da linguagem à mundivivência dos homens, em alguns contos de "Os Meus Amores", e pode também encontrar-se em Rentes de Carvalho, A.M.Pires Cabral, João de Araujo Correia, Modesto Navarro e até num escritor de vivências mais cosmopolitas como Ernesto Rodrigues.

Mas a sua afirmação tem sido utilizada também a propósito da relação entre uma língua e a visão do mundo que a mesma encerra. Na maravilhosa expressão de Vergílio Ferreira, “Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação.”

Quem compara textos de diversas línguas sabe que assim é: uma língua corresponde a uma certa visão do mundo.

Não se conclua desta minha nota que a linguagem usada por um escritor transmontano corresponde necessariamente à expressão de uma realidade local ou regional. Os escritores transmontanos são tão universais como qualquer outro. Há, de facto, uma linha de escrita que, por dar especial relevância a um contexto social localizado, coloca na fala das personagens uma linguagem particular. Isso não implica que um escritor transmontano não manifeste na sua obra as mesmas preocupações universais que se manifestam noutras escritas. O Torga que escreveu primorosa e "transmontanamente" "Contos da Montanha", "Pedras Lavradas" ou "Os Bichos" é o mesmo que se emociona "universalmente" quando, em "A Criação do Mundo" na descrição duma viagem a Itália, nos dá conta de opções assentes em ideias claras e preocupações universais sobre a política e a liberdade, no ambiente de chumbo em que o fascismo mantinha vários países europeus, ou quando, no decurso da mesma viagem, se extasia perante a universal genialidade da arte e da cultura renascentistas, e que escreveu ele próprio:
"Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito."

Obrigado, pois, meu caro Carlos, pela perspicácia da sua análise da escrita do Hélder. Estou convicto de que o autor apreciará essa sua contribuição, que enriquece o acervo da sua bibliografia.

F. Gouveia

Anónimo disse...

Quando abri aqui, pensava só em elogiar a apreciação crítica de Carlos Fiúza( agora sem gravata, o que não se nota na escrita). Mas aparece-me sem contar um texto de Fernando Gouveia e sou obrigado a dividir o elogio pelos dois. Sabem que, se não tivesse adquirido nos últimos tempos uma boa carapaça de irresponsabilidade, não teria coragem para me meter no vosso grupo. A minha opinião(que interessa a minha opinião?) é que estes críticos literários me parecem com uma capacidade muito fora do comum.
Caro HR: conheço-o já de outras obras e esta parece-me seguir na mesma esteira. Hei-de ler este livro e, com certeza, com ele ficarei tão emocionado como com os que li, dada a humanidade que os caracteriza.
Um abraço a todos.
JLM

Anónimo disse...


Meus Caros:
HR, FG e JLM

Os meus agradecimentos pelo vosso empenho em ler a crítica
que ma atrevi a "alinhavar" sobre "Terra Perda".
Não sou "profissional" da escrita... mas a mesma "mexe" comigo.
Faço o qque posso,por "carolice", melhor, por "puro Prazer".

Abraço a todos.
Obrigado.
CF

Anónimo disse...

Estes qualificados comentários de índole literária, relativos ao meu livro de contos TERRA PARDA, e aqui apresentados pelos amigos Carlos Fiúza, Fernando Gouveia e João Lopes Matos, são para mim um importante fator de encorajamento para continuar na senda da escrita criativa. Obrigado por isso.
Um abraço a todos.

HR