26 agosto 2013

Leituras de fim de verão: Eça de Queirós

«Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que Suas Incelências lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar... Jacinto ocupou a sede ancestral — e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colher de estanha. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou — e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: — Está bom!
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia: três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
— Também lá volto! — exclamava Jacinto com uma convicção imensa. — É que estou com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado — e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas!... Tentou todavia uma garfada tímida — e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
— Óptimo!... Ah, destas favas, sim! Oh que fava! Que delícia! E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio...
— Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo! O homem óptimo sorria, inteiramente desanuviado: — Pois é cá a comidinha dos moços da quinta! E cada pratada, que até Suas Incelências se riam... Mas agora, aqui, o sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!»


Eça de Queirós
A Cidade e as Serras

5 comentários:

Anónimo disse...

Senhor professor Zé Mesquita, o senhor só publica clássicos ou transmontanos mortos. Por que não se digna postar à mirandesa AM Pires Cabral que escreveu um prefácio no grande livro do ilustre Hélder Rodrigues "Terra Parda"? Ou mesmo extratos deste seu grande colaborador?

ML

josé alegre mesquita disse...

Caro ML, eu publico o que gosto. Você tem também toda a liberdade de publicar o que gosta usando esta via. O Hélder tem a porta aberta para publicar o que desejar.

Anónimo disse...

Os meus agradecimentos ao sr. "ML" (que eu juro não saber quem seja), mas o nosso amigo JAM tem tido uma atitude louvável em proporcionar neste nosso espaço, os melhores autores da nossa Literatura. Por outro lado, deixe-me dizer-lhe, meu caro "ML", que os escritores (ou outros criadores) nunca morrem, pois deixam para a eternidade a marca dos seus passos no pedacito de vida que lhes calhou em sorte.
Um abraço para todos.

HR

Fernando Gouveia disse...

A passagem de "A Cidade e as Serras" que o JAM hoje nos eferece sintetiza a história do romance de Eça de Queiroz. A linha discursiva põe em confronto dois mundos, muito distantes um do outro. Jacinto, a personagem principal, vivia na Paris cosmopolita e moderníssima no dobrar do sec. XIX para o Séc. XX e desembarca, depois de uma viagem atribulada de combóio, em Tormes, devendo pernoitar numa casa de província na qual, apesar das amabilidades do pessoal, o conforto era muito sumário. Mas depressa descobre os prazeres do campo, da comida caseira, do ar puro, dos passeios matinais e, penso eu, da paz que se apodera de quem se vê livre do inferno da cidade. A tal ponto que o seu amigo, Zé Fernandes (?) (narrador desta parte da história), ficará surpreendido quando, alguns dias mais tarde, o vai procurar a um hotal de Lisboa e fica a saber que o seu "príncipe" está feliz da vida...na aldeia!
Belíssima selecção, JAM. Parabéns.

josé alegre mesquita disse...

Está muito bem descrita a contextualização da passagem d`As Cidades e as Serras`do Eça. Só sublinhava que Eça é um escritor essencialmente urbano, de quadros e figuras citadinas, onde com mestria e crítica corrosiva analisa a sociedade do seu tempo. Com Os Maias atinge esse enorme nível de mestria. Porém, o romance mais cáustico, na minha opinião,é O Crime do Padre Amaro. A Cidades e as Serra pertence à última fase do escritor (só seria publicado depois da morte), onde se afasta do realismo e abandona a crítica pesada que fazia à sociedade portuguesa da época.
Grande Eça, que depois de desancar a cidade e os seus cromos escreve esta grande obra "A Cidade e as Serras", uma apologia ao campo e ao seu viver. Creio ser sua intenção deixar um legado para o futuro