11 fevereiro 2013

O rio que já não canta



Era uma vez um rio que entoava cantigas da minha terra ao sabor das estações e da vida. No estio,  canções de embalar, no longo inverno, canções de assustar e, dizem, muitas cantigas de amor. 

Ele morava num vale encantado. Um mar de pedras e penedos, com precipícios e locais  mágicos, anfiteatro perfeito a quem o queria escutar e melhor entender as suas árias. 

E o que eram e de onde vinham estas melodias que ecoavam pelo vale  encantado? Eram com certeza canções de amor porque o nosso rio namorava com as pedras em mil ternuras e incontáveis murmúrios. E como nos grandes amores não faltavam grandes zangas que redundavam em tormentas que levavam tudo á frente numa fúria incontida, e alguns silêncios resultante de estios prolongados, quais amuos de namorados. Fruto deste amor uma imensidão de pedras rolantes, vistosas, atraentes e muitas e muitas cantigas de amor.

Todos os vales encantados tem os seus extraordinários habitantes e as suas fantásticas façanhas. Ano após ano, num porfiar de séculos, o bicho homem povoou-o de prodigiosas varandas, janelas e postigos onde plantou o seu sustento. Ali vinha encher o peito de ar, ouvir as baladas do rio cantante e, particularmente, calejar as mãos na enxada e desafiar a força e as sons do rio cantante. Quem plantou e cuidou, também colheu figos doces como o mel, amêndoa gostosa, uvas que se transformavam em vinho sem igual e azeitona que dava azeite fino de sabor incomparável. Da cortiça dos sobreiros que plantou, fez casas de abelhas, pródigas em oferecer-lhe o mel e a cera que lhes alumiava a noite escura. Também por lá deambulavam poetas e demais artistas à procura de musas inspiradoras, mas era sempre o rio cantante que se fazia ouvir mais forte e só os que tinham alma grande e apurado ouvido o sabiam escutar. 

O rio de que vos falo orgulhava-se de ser selvagem e quase indomável. Certa ocasião riscaram-no com duas linhas e nele colocaram um cavalo de ferro que vomitava fumo das suas entranhas e atroava os ares com um silvo agudo. Mas ele não se importou. Continuou a cantar as mesmas cantigas, quiçá a mostrar-se mais vaidoso aos olhos dos viajantes que para ele olhavam boquiabertos das janelas do corcel de fumo porque mal percebiam o que o rio lhes dizia.  

Este é um rio cantante a quem agora vão colocar uma mordaça em forma de barragem e o rio das canções de embalar, de assustar e de amor vai calar-se para sempre. Se agora forem ouvi-lo com o coração aberto e a alma grande, perceberão que já não canta, apenas chora… 

11 comentários:

Anónimo disse...


O rio que canta

Diziam os antigos que a variedade deleita: varietas delectal.
Uma das virtudes da nossa língua é precisamente o deleite que nos oferece a sua estupenda variedade.
Limito-me à variedade de denominações que a mesma coisa pode ter em terras diferentes do mundo que o português criou.
O dito de “cada terra com seu uso e cada roca com seu fuso” ajeita-se à explicação fundamental do facto reportado neste belíssimo texto de José Mesquita.
Suponhamos que um pinheiro deixa cair as suas folhas secas.
Como se chamam tais folhas secas que o pinheiro largou de si?
Eis o nome geral: agulha.
A agulha é a chamada genérica da folha seca do pinheiro, porque a semelhança acúlea é evidente.
Se formos, porém, por esse Portugal fora, ouviremos muitas outras denominações e termos aplicados às mesmíssimas folhas dos pinheiros.
É conforme as terras. Assim, nuns pontos de Portugal chamarão caruma ao que noutros sítios se chama graviço ou grabiço.
Só isto? Não. Porque noutras bandas as folhas secas dos pinheiros são moliço e, se continuarmos, ouviremos variadíssimas chamações.
Vemos, destarte, que as palavras são o espelho da vida.
Posto assim o nosso espírito na observação do que a vida é, as palavras tornam-se luminosas, porque o nosso espírito recebe o sol das realidades.
E quereis ver como podemos até descobrir poesia na palavra mais humilde?
Nos arredores de Valença, às agulhas dos pinheiros chamam candeia.
Aí se encontra nessa palavra candeia a luminosa ideia de traduzir aquilo com que os pobres descrevem este quadro poético: Estão-se queimando as agulhas dos pinheiros no lume. A casa é escura, como a noite escura. Mas aquelas folhas verde-negras da árvore são como candeia que ilumina o casoto.
Mas eu não quero desviar-me no especto particular da riqueza verbal do nosso povo no ladrilhado geográfico e linguístico da “pequena casa lusitana”.

E assim,
a minha homenagem a este “Rio que Canta”.

Carlos Fiúza

Anónimo disse...

Ultimamente, com grande frequência, JAM tem o condão de obrigar-me a abrir a boca de espanto,pasmo e admiração.Literariamente, o texto parece estar perfeito. Só é pena(para mim) que a minha sensibilidade literária tenha diminuido imenso com o rodar dos anos. Tudo agora para mim é relativo e efémero e sujeito a mudanças constantes que retiram o carácter de sagrado àquilo que antes julgava insusceptível de perder a perenidade.
Também os valores por ele defendidos no seu livro sobre a sua terra e gentes nos pareceram eternos e,afinal,outros os vieram substituir.
Um valor que dignificava a vida do homem e que achávamos indispensável à dignidade humana, o trabalho, começa agora a ser considerado como algo só possível a alguns e,portanto, não essencial para os outros,para todos aqueles que não encontram trabalho para se dignificarem.
O mundo muda e os olhos que o vêem terão que focá-lo, momento a momento, de forma diferente.
Os homens morrem,para além do mais, porque são incapazes de adaptação a mudanças que ultrapassem a sua capacidade de mudar.
Não sou capaz de perceber como poderia,ainda hoje,viver um Afonso Henriques.
JLM

Anónimo disse...

Lindas palavras as do Sr.JLM. Pela sua forma de ver o mundo, a floresta da Amazónia, à muito deveria estar destruída.O homem é uma máquina adaptável. Só se não for!...
Tudo o que for contra as leis da natureza um dia morrerá com ela.

Anónimo disse...

Caro anónimo do comentário nº3:
Verdadeiramente, com o seu comentário, pôs-me entre a espada e a parede.
Como vou eu agora sair-me desta? Vou procurar primeiro dar-lhe razão para lha tirar no momento seguinte ou então vou procurar que ambos tenhamos razão.
Quem sou eu para não achar beleza num rio levemente selvagem que, ainda por cima, cantarola de pedra em pedra? Como serei eu capaz de não descortinar a força dum grande pulmão do mundo, como é a Amazónia, que alberga no seu seio animais selvagens e gente primitiva?
Claro que gosto e prezo ambas as coisas.
Só que, desde que o homem é homem, ele interfere permanentemente com a natureza. Para bem ou para mal, o homem construiu um açude em Mirandela, tentou o desenvolvimento de Trás- Os-Montes construindo o complexo do Cachão, o que acarretou descargas poluentes para o rio, está a edificar uma barragem para produção de energia(garanto-lhe que a minha vontade não teve influência nenhuma nestas obras).
À semelhança do Tua, também o Douro era extremamente belo sem barragens: tinha, em Miranda, um vale profundíssimo de uma beleza rara, a foz do Sabor era muito mais natural do que é hoje, na Senhora da Ribeira corria com um particular encanto, constituindo uma ilha que dividia a corrente, na Valeira metia medo, na Régua espraiava-se. Construídas as barragens passou a ser um rio domado, com o qual temos que viver, quer gostemos ou não. Em relação ao Douro, já a adaptação humana começou há muito tempo: hoje fala-se nas albufeiras que permitem desportos náuticos , na navegabilidade que traz turistas até Barca d`Alva e esqueceu-se o rio doutros tempos.
No Tua irá acontecer o mesmo. A adaptação consiste em conseguirmos dar saltos no tempo ,apesar de alguns serem dados contra vontade. Um jovem consegue, sem esforço, aderir ao diferente. Um velho tem já na sua mente uma série de imagens que fazem parte da sua vida e já não consegue adaptar-se. Eu, que sempre fui a favor do IC5, não sou capaz de interiorizar o atrevimento daquela estrada em esventrar todos aqueles montes para que os carros passem sem uma ponta de respeito pela grandiosidade da natureza.
Concluindo: a nossa sobrevivência está dependente de sermos capazes de gostar duma coisa mas de aceitarmos, ainda que a contra gosto, a coisa oposta.
A vida continua. E não pense que é só o homem a praticar atos de destruição. Quantas vezes isso é feito pela própria natureza(por Deus ,segundo alguns ): pense nos tremores de terra, nos tsunamis, nos tornados, nas erupções vulcânicas.
E o homem que tem de fazer? Aguentar, adaptar-se.
O interessante é que o homem, ao fazer o que faz(barragens, pontes ,etc.) está a aproveitar-se do conhecimento e domínio que mais e mais vai tendo das leis da natureza.
JLM

Anónimo disse...

Albert Einstein: "Temo o dia em que a tecnologia se sobreponha à humanidade. Então o mundo terá uma geração de idiotas."

Anónimo disse...

o homem que tem de fazer? Aguentar, adaptar-se.

a quê e a quem ? a outros homens?

Anónimo disse...

Sim, a natureza também tem o seu grau inato de perigosidade, mas na minha opinião o homem é o principal prevaricador.
Todas as obras que sejam feitas atendendo a estudos de impacto ambiental e a nível económico custos benefícios.
Custos - Todos pagamos.
Benefícios - desconheço, pois a exemplo das diversas barragens que foram feitas no rio Douro, não vejo quais os benefícios que trouxeram para a região.
A agricultura é o que é, indústria não existe, e os serviços estão centralizados em Lisboa, e por isso é que tudo funciona na perfeição.
Temos um eixo ferroviário com ligação à Europa, Linha do Douro que além ter sido amputada, e com indícios de encurtar ainda mais, não beneficia com a electrificação e com as barragens aos seus pés,os Transmontanos pagam a energia ao mesmo preço que os Lisboetas e ganham em média menos de metade.
A região em si está a passar por um processo de desertificação galopante e irreversível.

Anónimo disse...

Tenho por obrigação, decorrente das regras da argumentação, procurar responder, com respeito e elevação, às altercações que me foram levantadas.
Albert Einstein , à semelhança de milhares de seres humanos, sentiu medo daquilo que o homem podia inventar. Neste caso, pensava que a tecnologia, que ele estava a contribuir a desenvolver, um dia podia tomar o freio nos dentes e ser ela a mandar ,tornando-se os homens uns idiotas, governados por ela. E pode um pouco ser assim.
Mas este pensamento ,concretizado na asserção ”depois de nós, o dilúvio”, é próprio de quem gostaria de existir para sempre e não quereria deixar de estar presente no quotidiano do mundo. Sempre os problemas que se levantaram foram resolvidos bem ou mal pelas posteriores gerações. Nem nada nem ninguém retarda o normal correr do tempo só porque há riscos a evitar.
Quem poderá negar, no entanto, que , apesar de tudo o que aconteceu, a tecnologia tem servido em grande medida para libertar o homem e dar-lhe uma maior dignidade?
Que dizer da evolução na saúde, no conforto doméstico, na libertação dos trabalhos rotineiros e pesados ,na facilidade de deslocação, nas comunicações, no computador onde agora escrevo?
Se algum mal há na tecnologia, isso deve-se à inabilidade, normalmente temporária, do homem para tirar dela tudo o que de bom pode ter para todos.
O atual prejuízo( consubstanciado em desemprego) provocado às pessoas pela mecanização e automação resulta do facto de ainda não se saber tirar proveito das tecnologias em benefício de toda a gente mas apenas a favor de alguns.
Só pode estar contra a tecnologia quem puser o acento tónico na vida eterna: então só terá interesse o que se passa no além, perdendo qualquer importância o que se passa deste lado.
Mas não vejo ninguém a pensar e atuar assim, nem a imensa maioria dos crentes.
Fico, agora, por aqui.
JLM

Anónimo disse...

O homem tem que aguentar e adaptar-se.
É verdade. Que fizeram os homens das cavernas?
Tiveram que aguentar as intempéries e adaptar-se, recolhendo-se nos buracos dos montes.
Que fizeram os homens perante os mais poderosos? Aguentaram, tornando-se servis, e adaptaram-se às condições miseráveis da sua existência.
Os exemplos podiam multiplicar-se. É certo que são possíveis duas saídas, o suicídio ou a luta.
Em relação à primeira saída, muito pouca gente tem recorrido a ela.
Quanto à luta, ela tem existido ao longo dos tempos: a luta contra as forças adversas da natureza e contra as injustiças, luta longa, dura, quantas vezes inglória.
É esta a sina da humanidade.
JLM

Anónimo disse...

são estes comentários que traduzem a realidade

nada melhor que a adaptação ... para haver evolução...

são estes conselhos aliados ao
" é muito brutinho" coitado e não dá para mais

(para terem escravos baratos para alguns poderem ir para Lisboa)

que fizeram com que trás os montes estivesse como está..

e depois esses alguns ... fizeram com que o país estivesse como está.



Anónimo disse...

Este comentador de 18Fev, tem toda a razão!
Para Lisboa em força, para África, para o Brasil, para a Europa...
Enfim, para todo o lado e até para os liceus, para as universidades...
Tudo fugia desta merdice...
Depois, quando vinham ou vêm, armam-se em ricos carapaus ou mesmo "doitores e ingenheiros"...
Tudo o que ficou ou é labreguice ou aproveitadores destes!
Desvergonha de todos quantos participaram nesta enorme fraude social!
É um desgosto enorme quando de vez em quando olhamos esta realidade...