06 janeiro 2013



"O mundo rural português acabou. Um mundo velho e dorido feito de mãos calejadas e encortiçadas, doença e fome, pouca esperança de vida e muita mortalidade infantil. Um tempo de amálgama de pessoas e animais na mesma chafurdice do esterco. Um lugar de “pardieiros” onde coabitavam com as almas de Deus, percevejos e piolhos, ratos e pulgas, moscas e aranhas.
Ninguém sabia nada do mundo, nem de política, nem de geografia mundial, apenas valia o que o senhor padre dizia na missa, o senhor professor ensinava e o patrão da “casa grande” mandava. O mais importante da vida eram os casos de rua e os falatórios; as altercações e as zaragatas; os casamentos e os batizados; o Natal, o Entrudo e a Páscoa, a festa e o bailarico; os roubos da raposa no galinheiro e a chacina do lobo que matou a ovelha ao pastor…
Desgraças havia muitas: os incêndios que destruíam montes e searas; o mau-tempo que condicionava a subsistência: as trovoadas que inutilizavam culturas e levavam terras e colheitas; as secas que tiravam o “pão para a boca”, estiolando lavouras; a morte da cria… Calamidades também eram a daquela mulher que fugia de casa com medo do marido que alcoolizado a espancava, mas regressava sempre pelos filhos, pela sobrevivência, pelo amor… ou daquele outro que levava uma sacholada por tocar no marco do vizinho.
As famílias eram prendadas com ranchadas de filhos que se criavam na rua alanzoados  e de moncas no nariz, comendo bocados de pão negro como o bréu, malgas de caldo, pássaros apanhados nas ratoeiras, subidas às cerejeiras… Instruíam-nos na “arte” do cultivo da terra, formavam-no com um ou outro mosquete à mistura nos códigos da honra e da lealdade à família e a Deus, contavam-lhes histórias de almas penadas e lendas de mouras de encantar. Aprendiam na rua a amizade que ficava para a toda a vida e ficavam impressões que guardam toda a pureza e graça.
Na escola, memorizavam-se quantidades enormes de nomes que de pouco serviam, doutrinavam-nos como fazendo parte de um povo predestinado, de grandes feitos, que no mundo não havia igual e isso enchia-nos o peito ilustre lusitano com um Portugal do Minho a Timor que devíamos defender mesmo com o risco da própria vida. Mas, o importante era sempre o respeito devido aos pais, ao professor, ao padre e a Deus.
O mundo rural era feito de lugares e coisas que contam, de casas com pedras e com sinais, de andorinhas nos beirais, do negrilho no adro, de sombras nas matas, de água fresca nos regatos, de cerejas e malápias, de searas onduladas pelo vento, de ninhos nas copas das árvores… As sensações eram verdadeiras e diferenciáveis: o pão, o vinho, as batatas, as couves, o azeite, tinham cheiro, textura e sabor únicos. Os sentimentos eram realmente verdadeiros, de comunidade e solidariedade na alegria e na dor, nas trocas genuínas de palavras, ideias e sentimentos. Os acontecimentos tinham enredo, graça, naturalidade: o Natal, o Entrudo, a Páscoa associavam-se a paladares, roupas, cheiros, afetos. A natureza tinha ciclos de encanto: bastava observar os olhos de um lavrador ao comtemplar uma seara, uma vinha, um olival para neles vislumbrar a alegria plena e a paz do dever cumprido. O ciclo das colheitas obrigava ao dever inadiável: o trabalho era para realizar quer chovesse a cântaros ou o frio enregelasse os ossos.
O mundo rural era feito de equilíbrios de alma. As pessoas eram genuínas, fieis à palavra dada, amigos dos seus amigos. Tinham dignidade: agrediam-se umas às outras como feras, mas sempre movidos por altos sentimentos de honra, lealdade e orgulho. A mudança de um marco de um terreno, a destruição de uma cultura, uma ofensa à honra familiar eram infrações a códigos de honra e cristalinas virtudes que estavam acima de qualquer outro valor e só uma alma honrada pode andar pelo mundo de cara descoberta.
Mourejava-se de sol a sol na busca do pão nosso de cada dia, numa luta titânica com a terra e as fragas que se cavavam em redor mesmo sabendo que nada produziriam. Sempre que a necessidade obrigava, emigrava-se para terras estranhas e ganhava-se dinheiro no mesmo mourejar com que partiram e regressavam ufanos e remediados, edificavam quatro paredes, compravam uma courela e continuavam a cavar a vida inteira.
Este é um retrato de uma parte de um país rural que terminou. O processo de despovoamento rural é irreversível. O regresso ao mundo rural, à agricultura de subsistência e à economia de morgadio, baseada numa numerosa mão-de-obra barata, miserável, pouco qualificada e excedentária… terminou. A economia rege-se por outras regras mais complexas. O agora propalado necessário retorno à agricultura e aos campos não pode ter a mesma matriz de outrora. Todavia, as nossas aldeias desaparecerão e poderão arrastar com elas um vasto património cultural edificado, mas também de saberes que está escrito no nosso código genético e é conveniente decifrar e preservar para equacionar o futuro e ensinar às gerações vindouras.
Este mundo rural acabou, estava preenchido de poesia por ser autêntico, e um pouco da alma portuguesa acaba com ele…"
in "Selores... e uma casa"

6 comentários:

Anónimo disse...

É difícil ler este belo trecho sem sentir que as mudanças desfazem e refazem,que trazem consigo a tristeza do irremediavelmente passado,a saudade do que fomos, e refazem os modos de trabalhar, de pensar,de viver,trazendo a alegria do novo, diferente.
Toda a vida é o somatório do ido e do que vem e há-de vir, esfrangalhando-nos por dentro, tornando-nos cansados e velhos,incapazes,por último,de aceitar a novidade.
Hoje,acontece tudo isso com uma crueldade terrível: nada é seguro,certo,duradouro.
Não seria possível andar mais devagar, para dar tempo a uma aprendizagem do novo?
JLM

Abcdesporto disse...

Parabéns José Mesquita.
Um excerto elaborado com muito sentimento e sapiência.

Anónimo disse...

"Selores e... uma casa! não é apenas isso; mas muito mais! E este segmento aqui plasmado pelo autor, é bastante elucidativo, assertivo e até concludente, pois retrata, não apenas uma localidade e uma casa, mas sim toda uma região (de)marcada pelas idiossincrasias do seu povo rude mas resistente, habitualmente entalado entre o granito e o xisto, mas sempre com uma esperança escondida no olhar. E, sabemos, quando esta (esperança) se perde, ele, o transmontano, parte para estranhas terras e de lá voltará um dia, com um sorriso mais largo... Tive oportunidade de adquirir este valoroso trabalho do meu amigo e colega José Mesquita e maior foi o prazer em o ler. Por outro lado, também estou de acordo com o amigo JLM, que há muito nos habituou às suas análises sábias,mas serenas, da experiência da vida e de um contacto social alargado. Só estou à espera de o encontrar pessoalmente para lhe oferecer, de mão para mão, o meu novo livro de contos TERRA PARDA que, curiosamente, aborda as quatões pertinentes e registadas neste texto do José Mesquita, mas sob a forma de ficção literária e que, talvez pudesse merecer uma pequena referência neste espaço, em vez de passar despercebido!... Afinal, espaços destes, devem também servir para informar...
HR

josé alegre mesquita disse...

Caro Hélder:
Agradeço as tuas sábias considerações sobre a minha despretensiosa publicação. Quanto ao teu livro, ele não passará despercebido porque a sua qualidade falará mais alto. No que concerne à sua divulgação neste espaço bastará um pequeno esforço da vossa parte. Como colaborador do blogue podes postar todos os comentários que entenderes para todos ficarmos mais informados. Exatamente como eu fiz com o meu escrito.
Abraço

Anónimo disse...

Caro HR: É com enorme prazer que o vejo de novo por estas andanças.Este blogue não se pode dar ao luxo de prescindir da sua colaboração. Um amigo destas lides(CF) já me tinha perguntado por si e eu,também intrigado,tratei de saber o que se passava.Soube que esteve muito doente mas que já se encontra recuperado.Seja bem vindo de novo.
Terei todo o prazer em ler o seu novo livro,do qual irei com certeza gostar tal como gostei dos seus outros que já li.
Com a sua colaboração iremos formar um grupo que continuará a pensar o melhor possível Ansiães, sempre no respeito das opiniões de cada qual,conseguindo estabelecer entre nós o que nesta fase da vida acho mais importante:a paz e harmonia entre todos numa partilha profícua de ideias .
Apetece realmente agora,no ocaso da vida,estabelecer relações sólidas de harmonia,tolerância,compreensão e paz.
JLM

Anónimo disse...

É com redobrada emoção que acabo de ler o comentário do nosso amigo JLM. Agradeço profundamente o seu elogio, que certamente não merecerei; e, neste meu regresso à vida, já sabe que poderá sempre contar comigo para (re)estabelecer "relações sólidas de harmonia, tolerância, compreensão e paz", que são, como sabemos, os autênticos pilares da interação humana! Até um dia destes...
Um abraço amigo.

HR