26 julho 2012

Me diga… me faça o favor… (Carlos Fiúza)


II – Brasil e Língua de Portugal

De vez em quando, alguns Brasileiros mais exaltados e menos razoáveis entram de dizer de si consigo: se os Portugueses falam português; se os Castelhanos, castelhano; se os Franceses, francês; se os ingleses, inglês; se os Alemães, alemão; se os Italianos, italiano, e assim por diante, cientificamente cumpre-nos declarar que os Brasileiros falam… a língua brasileira, que já não a portuguesa.
Esquecem-se, porém, estes críticos de reparar na cómica realidade seguinte: na mesma denominação do pretenso “idioma brasileiro” entram duas palavras que portuguesas são.
Isto é, a expressão peculiar a cada idioma tem adequado adjetivo com que o denomina, v. g.: língua portuguesa, lengua castellana, langue française, English language, deutche Sprache, língua italiana, etc.
E como se haverá de nomear a “língua brasileira”? Assim mesmo? Mas, se “língua” é palavra portuguesa e se “brasileira” portuguesa não deixa de ser também?!...
Em contrapartida a estas ideias cerebrinas, que de vez em quando se geram no Brasil, devemos ter sempre presentes as palavras de Getúlio Vargas: “A amizade luso-brasileira deve ser considerada uma causa nacional, tanto para o Brasil como para a Nação lusitana”.
Na verdade não foi em português que escreveram essas glórias da literatura do Brasil como Santa Rita Durão, “o fundador da poesia brasileira”, Machado de Assis, Rui Barbosa, José de Alencar, Coelho Nelo, Bilac, o poeta que cantou a “última flor do Lácio” e tantos outros nomes ilustres?
Mas cientificamente, pelo filológico, ter-se-á mudado de tal modo a Língua portuguesa falada no Brasil que necessário se torne crismá-la com nome que a diferencie do português?
Já se tem dito e escrito que as diferenciações prosódicas, morfológicas, sintáticas e semânticas entre o linguajar brasileiro e o falar lusitano são, em conjunto, comparáveis às que, por exemplo, distanciam idiomaticamente as línguas românicas. E até se recorre, por vezes a comparações para se tentar provar que lá há uma língua e cá outra.
Absurdas são tais comparações, pois semelhantes divergências existem em outras línguas cultas espalhadas na América, como por exemplo o inglês, o castelhano, o francês, que nem por isso deixam o nome só por terem sofrido diferenciações várias.
A verdade é só esta: a Língua de Vieira ou de Latino Coelho é a mesma de Machado de Assis ou Rui Barbosa e outra não foi aquela em que escreveram Camões e Bilac.
Há diferenciações? Há.
Ida para lá, a nossa Língua teve de sofrer um combate com a língua dos aborígenes, com a verdadeira língua “brasileira” - o tupi-guarani.
Ora, do choque entre a Língua ida de Portugal e a linguagem tupi resultou a vitória definitiva da Língua portuguesa, porque a civilização entrava, ia de fora para dentro, e nos combates linguísticos a civilização é que orienta o triunfo.
Mas não há nada mais pegadiço do que as palavras.
E assim, transplantada e vitoriosa a nossa Língua nas terras sul-americanas, ela não podia ficar imune, no contágio com a fala autóctone.
Aí temos, pois, a influência “tupi” no português do Brasil.
O “tupi-guarani” enriqueceu o Idioma luso, acrescentando-lhe vocábulos de paisagem brasílica, de costumes, de usos, de civilização local.
O progresso, a vitória da Língua de Portugal no Brasil foi uma espécie de anexação linguística, isto é, o Idioma vencedor e o vencido passaram a viver em contactos de fusão, pelo acrescimento das vozes brasílicas às vozes de Portugal.
O falar crioulo é o melhor tipo desse contacto linguístico, em que o Idioma português foi o dominador e anexador da língua alienígena.
Mas só esse intercâmbio se realizou entre o português e tupi? Não.
Porque a África estava em frente. De lá iam gentes para o Brasil aumentar o caudal da população.
E o rio da Língua avolumou-se também pelo contributo africano.
Temos, pois, estas três realidades:
Língua de Portugal - Língua tupi - Falares africanos.
Dada a resistência e a força característica do nosso Idioma, ele se transplantou ao Brasil e lá ficou forte, cada vez mais rico de vozes, a servir uma civilização que honra o Brasil e Portugal que o descobriu e lhe ensinou a falar em expressão que, já de si veículo de admirável cultura, continua sendo o veículo de outra digna dela - a literatura brasílica.
E esse foi um dos maiores milagres de Portugal no Brasil… a LÍNGUA, a qual une essa formidável extensão de oito milhões e meio de quilómetros quadrados!
As modalidades polifónicas e expressionais do Brasil têm por regente dessa orquestração o Verbo de Portugal.
Sem ele, o Brasil era a divisão, não era o que é - uno e forte.
E a melhor prova de que a Língua de Portugal não perde individualidade ao receber elementos tupis-guaranis, está em que a expressão se mantém portuguesa, apesar, inclusivamente, de aceções especiais que as nossas palavras tomem.

“- Quando o guerreiro terminou a refeição, o velho pagé apagou o cachimbo e falou:
“- Vieste?
“- Vim, respondeu o desconhecido.
“- Bem-vindo sejas.”

Quer dizer, o português “vieste?” empregado como a saudação usual a traduzir a hospitalidade indígena exemplifica bem a adaptação da nossa Língua cuja semântica se mostra capaz de dar o tom necessário à expressão literária da civilização brasílica.
As raízes do tupi-guarani afeiçoaram-se em numerosos termos, hoje com estrutura portuguesa.
E aí temos: abacaxi, ananás, arara, jacaré, jiboia, mandioca, tapioca, etc., etc.
Há um termo que em Portugal ganhou aceções especiais. É “caipira”. Veio do tupi “curipira”, isto é, homem do mato, do campo, e, daí, camponês, roceiro, labrego.
Dialeto “caipira” é o dos crioulos do Brasil. Pois, durante a guerra da sucessão em Portugal, pelo facto de D. Pedro ter vindo do Brasil e lidar com Brasileiros, os seus sequazes aproveitaram esse nome brasileiro para alcunhar os “miguelistas”, aos quais chamavam “caipiras” injuriando-os como se lhes chamassem boçais ou roceiros.
Lembrei há bocado que as vozes africanas também pelo Brasil enriqueceram a Língua de Portugal.
Quer-se exemplo? A palavra “samba”, vulgarizada e internacionalizada até, foi para o Brasil ida do Congo, e parece querer dizer “adoração, reza”, talvez pelo facto de se externarem as aflições, as preocupações e as alegrias por meio da dança.
O Brasil é, assim, a melhor certeza da perenidade da Língua aqui nascida neste pequeno recanto da Europa.
O Idioma fez-se tão grande que, para espraiar a sua imensidade, precisou de rolar por sobre o Brasil, como aquele rio que, nascido em pura mas humilde fonte serrana, vai procurar um mar onde a força e o volume se espalhem.
Se Portugal foi nascente e rio, o Brasil, agora, é largo Oceano da Língua Portuguesa.

 “E assi seguirei meu caminho por este mar de longo…”

Carlos Fiúza

(continua)

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