27 maio 2011

Sentimento: Carlos Fiúza

Sentimento…
Eu não concordo absolutamente com o célebre Talleyrand, astuto diplomata francês, sujeito imoral e espirituoso, que nos legou a opinião de que a palavra foi dada ao homem para mentir.
Porque era hábil em estratagemas e em mentiras, fugiu-lhe a boca para a verdade, ao considerar a palavra como um instrumento de trapacices.
Porém, se não concordo absolutamente, reconheço felicidade parcial na observação, pois a palavra muita vez serve mais a mentira ou a ilusão do que a verdade.
Factos quotidianos frequentíssimos no-lo provam.

Apresentam-nos uma pessoa cujo conhecimento não nos desperta o menor interesse moral ou material, e logo exclamamos: “muito prazer em a conhecer”.
Está claro que não seria humanamente possível dizermos apenas: “tomo nota da sua pessoa e de seu nome”. Ou então: “tomo o seu conhecimento”. Ou ainda: “vamos a ver se a gente não se vem a zangar”.
Enfim, qualquer destas modalidades de prudência e sinceridade estão de todo imprevistas nas relações sociais.
Todavia, o caso é que, ao exclamarmos, diante de pessoa recém-apresentada: “muito prazer em a conhecer”, verdade, verdade, na mor parte dos casos, é mentira, não só pelo que toca à falta de “prazer” afirmado, senão também pelo exagero de classificar de excelência uma pessoa que nem sequer sabemos, ao certo, não seja antes refinadíssimo biltre.

O fenómeno é, porém, universal. E línguas há como o francês, por exemplo, onde o exagero ainda se torna maior do que em a nossa.
Já que falei em apresentações, recordemos a expressão francesa: “enchanté”.
Quer dizer, ficam logo “encantados” os franceses quando se veem pela vez primeira.
Marque-se um ponto de sobriedade à nossa língua. “Muito prazer” tem um poucochinho menos de imprudência do que “enchanté”.
E, se quiséssemos prosseguir a tomar a temperatura das expressões, víamos os ingleses com menos febre, pois “I am very glad to make your acquaintance” desce às vezes à frieza de um simples: “how do you do?”.

Coração e boca raramente andam a par na expressão dos seus sentimentos, e o mesmo acontece com o cérebro na expressão dos pensamentos.
Diz-se que o coração fala, que a boca fala, que os olhos falam, que o rosto se exprime.
É verdade. Mas, se fossemos a fazer um concurso, veríamos que a boca, precisamente porque é o mais próprio dos meios da expressão, é quem prega mais mentiras, nas suas variantes de hipocrisia, patranhas, aldrabices, etc.

A psicologia dos povos refreia ou desenfreia esta necessidade humana de mentir com palavras.
“Gosto imenso de auscultar a opinião do Povo” - eis outra frequente parlapatice.
O “imenso” não tem medida.
Mas a empolação natural ou fatal da linguagem obriga-nos a cair em afirmações deste descoco: “Gosto imenso de ouvir determinados políticos”.

As noites de luar, por exemplo, exercem em mim um estupendo enlevo.
Gosto muito de ver a palidez da lua, gosto do prateado das águas dos rios ou do mar, quando o luar cintila, tremeluzindo nas águas. Mas, confesso, talvez porque me deixe prender veramente pela magia do luar, já não suporto o seu elogio, mil vezes, por mil formas, repetido.

Dir-me-ão que a arte verdadeira é precisamente a procura da expressão para o inexprimível.
Mas eu quero afirmar que há também a arte de saber calar.
Umas vezes parece que as palavras não chegam; outras muitas, temos a impressão de que sobram.
E isto dá-se nos grandes momentos, como nos momentos de frívolo gastar da vida.
Quanto a exemplos de mentiras persuasivas, vemo-los em larga cópia de casos nas propagandas políticas, e de muita outra espécie.
Não há “produto” que não seja o “melhor de todos para o progresso do País”.

Sim, tudo isto assenta na potência de falsidade da palavra humana.
Ela é tão falsa, que até às vezes se brinca com as próprias juras. Há quem jure “por estes dois que a terra há de comer”, mas, para não lhe cair o castigo, põe ao pé dos olhos dois dedos e nestes faz tombar a responsabilidade do juramento.
Como a língua portuguesa não é mais santa que as demais línguas, sejamos indulgentes (mas não parvos) para com os recursos da mentira.

O que vale, no fim de contas, é que às “palavras leva-as o vento”...
O que vale é o “sentimento”… os “olhos” do nosso interior.

E já agora remato com este episódio verídico.

Aqui há tempos eu vi certa mãe pôr-se aos beijos ao filhote.
Deu-lhe um beijo, e chamou-lhe “meu menino”. Deu-lhe outro beijo, e disse “meu rico”, pondo um tom de raivinha amorosa no cerrar dos dentes com que proferiu a exclamação.
E o menino sorriu e a mãe, enlevada, ia a dizer: “meu…”, mas não acabou, estreitou-o a si, e poisou-lhe um grande beijo.

De modo que o BEIJO foi a melhor expressão da linguagem interior daquela MÃE.



Carlos Fiúza

3 comentários:

Anónimo disse...

Os franceses têm uma expressão popular bem conhecida que quase pode resumir tudo aquilo que o excelente C. F. aqui tão superiormente nos mostra: PAROLE, PAROLE...
Fundamental, é a proveniência delas, não é, caro C. F. ?...
Cumprimentos

h.r.

Anónimo disse...

Correção: Claro que em PAROLE, PAROLE, falta um "S" para fazer o plural (PAROLES, PAROLES).

h.r.

Anónimo disse...

Não compreendo. Será algum caso de PAROLOS?