18 setembro 2006

A festa da Santa Eufémia (texto revisitado)

A festa de Santa Eufémia, em Lavandeira, é a romaria mais conhecida e uma das mais concorridas do concelho de Carrazeda de Ansiães. É também conhecida por “Festa da Marrã”, pois é tradicional cozinhar-se carne de porco fresca(marrã ou marrão),, assada nas brasas ou frita na própria gordura, a que chamaram marrã que depois é degustada por grande número de visitantes. Assim, todos os anos, nos dias 15 e 16 de Setembro, tem lugar esta festividade em honra da Santa. Aos naturais juntam-se largas centenas de forasteiros atraídos pelo fervor religioso, assim como pelo conjunto de atracções profanas.

A Santa Eufémia, mártir dos primeiros tempos da igreja cristã, agregou à sua volta um grande e popular fervor religioso. A história do seu martírio, no antigo circo romano, ao conseguir suster miraculosamente os leões esfomeados, colocados em destaque no altar e em seu redor com uma mansidão de cordeiros, provocou no povo uma admiração e um culto que ultrapassou as fronteiras concelhias. A procissão espelhava essa devoção religiosa, na sumptuosidade e grandiosidade da armação dos andores, nas bandas de música contratadas, nos figurantes e multidões que a acompanhavam.
A irmandade surgida da sua veneração estende-se por vários concelhos e agrega centenas de irmãos que para ela contribuem monetariamente em troca de bem-aventuranças e de missas celebradas pelo sufrágio das almas. Todos os anos, a Comissão Fabriqueira percorre variadas aldeias para recolha de fundos. Estas irmandades são ainda lembrança de outras já só memória que se perde no tempo. Constituíram-se como instituições fortíssimas em rendimentos que construíram templos e executaram múltiplas acções piedosas nas aldeias.

À “milagrosa Santa Eufémia” (como o povo lhe chama) roga-se em momentos de grande aflição – as doenças próprias ou de familiares, a “parição” das crias, a defesa das colheitas das intempéries… e fazem-se promessas pagas em dinheiro ou também em azeite, cereal, cera e muitas vezes em esforço físico - de joelhos, de rastos... Quantos sacrifícios e promessas a santa escutou das mães, cujos filhos foram mobilizados para a Guerra Colonial de África.

Para além da componente religiosa acresce a parte pagã (uma e outra têm uma importância muito igual), que vai buscar raízes ao suíno, símbolo de fertilidade e objecto de diversos cultos na pré-história de que resultaram diversos exemplares em pedra executados e semeados, quais menires do Obelix, um pouco pela região.
A carne de porco era o principal “peguilho” das nossas gentes do campo. Em todas as casas se matava o "requinho", com grande importância na dieta rural, cujo tamanho era directamente proporcional às posses de cada um.
A festa constituía uma ocasião muito especial - as salgadeiras já estavam esgotadas há muito e só a Páscoa trazia um pouco de cabrito, as ceifas e malhadas um pedaço de ovelha e cabra, intervalada com uma ou outra galinha caseira. Depois do jejum de vários meses de carne fresca do bácoro, pois desde a matança do Inverno, ela raramente subia ás mesas, era chegado o momento da grande festa da carne – a marrã da Lavandeira.
A força da “gula” da carne saborosa do marrão atraía todas as camadas sociais. Os mais endinheirados distribuíam-se por diversas casas particulares, que se abriam ao negócio em marcações prévias. Aí saboreavam os autênticos prazeres da carne em lautas "comezainas". Os mais parcos de recursos e de volume da carteira, mais numerosos, degustavam a delícia no arraial, misturando a carne e o pão com o pó e o vinho.
As tasquinhas espalhavam-se pelo exíguo espaço do adro. O manjar incluía para além da marrã, os rojões, os ossos da assuã... dos bácoros caseiros tratados com as "viandas" substantivas e polvilhadas de farelo, que os talhantes, muitos só ocasionais, procuravam por todo o concelho e abatiam às dúzias no local, numa mortandade significativa e também ruidosa.
Os folguedos estendiam-se ainda pelo convívio, pelo negócio das barracas de quinquilharias e dos "tirinhos", os doces caseiros e pirolitos, o arraial, o fogo de artifício…

Principalmente para os habitantes, como eu, da “Poça” (Lavandeira, Selores, Seixo de Ansiães e Beira Grande), a festividade era o grande acontecimento anual pelo seu cosmopolitismo na diversidade de gentes que ocorriam e todo um conjunto de práticas e vivências – coisas nunca vistas, sabores nunca provados, sensações nunca experimentadas.
Na minha infância, a festa da Lavandeira significava um mundo de aventuras preparadas com muitos dias de antecedência. Vistos e revistos todos os conteúdos das barracas espalhadas pela rua íngreme de acesso ao adro, era altura de "namorar" as verdadeiras preciosidades irresistíveis e lindíssimas aos meus olhos cheios de ingenuidade, desde Nossas Senhoras florescentes a brinquedos de madeira e lata passando por inutilidades com o símbolo de um clube. Visitadas e revisitadas as barracas e depois da decisão dificílima, que incluía a execução de contas complicadíssimas, lá investia os tostões amealhados com tanto esforço no artigo escolhido que me iria preencher muitos sonhos nos dias seguintes.
Chegava a adolescência e não esmoreciam os sentimentos de ansiedade pela espera desejada. Este era o local ideal para a descoberta de novas sensações compartilhadas com alguém do outro sexo, fruto da necessidade de afectos, no baile do arraial e na penumbra do adro e das ruas, até muito tarde, ao som das mais afamadas bandas musicais.

A festividade teve o seu ponto mais alto na década de sessenta e setenta derivado do período mais profícuo da emigração. As copiosas ofertas dos emigrantes possibilitaram um crescimento sustentado e efectivo, visível nos diversos melhoramentos executados no adro da igreja, na pompa da procissão, no brilhantismo dos arraiais e na espectacularidade do “foguetório”. Era a maior festa do concelho e até um caso regional, teve honras de programa televisivo no único canal existente, quando aparecer na TV não era para todos e vulgar como nos dias de hoje e foi objecto de “study case” por um autor conhecido.

A festividade tem perdido importância ao longo dos últimos anos fruto de vários factores. As festas populares deixaram de ser tão importantes do ponto de vista social e humano, já que as ofertas diversificaram-se, principalmente, a partir dos anos oitenta, coincidindo também com o aumento do nível de vida das populações. A atracção pela marrã decresce, pois a carne torna-se um alimento muito mais vulgarizado, a qualquer momento se pode comprar. As receitas dos emigrantes decrescem. Outras actividades de âmbito recreativo e social diversificam-se e colhem preferências, como sejam as discotecas. Algumas festividades concelhias aumentam de importância e de deslumbramento, crescendo também a concorrência e até superando a da Lavandeira em nomes musicais sonantes para os arraiais, A festa da Santa Eufémia começa a ficar relativizada face a outras festejos e quase perderá a sua posição dominante, quando comparada com a Feira da Maçã em Carrazeda e as festas dos Mogos e da Fontelonga. O fervor religioso diminui face ao acréscimo do consumismo e também ao aumento dos conhecimentos gerais. Velhas práticas religiosas começam a ser postas em causa e a Igreja não soube acompanhar as novas mudanças de modo a atrair praticantes na população jovem, possíveis destinatários das solenidades religiosas das romarias. Todos estes e muitos outros factores se repercutiram no decrescimento da importância da festa da marrã.

A festa da Lavandeira continua porém, a ser um património concelhio que urge preservar e revitalizar. Ela é um bem que ultrapassou as fronteiras da aldeia e pertence um pouco a todo o concelho. Falta reunir sinergias para potenciar o seu prato característico, como atractivo turístico - a marrã - e ideias para projectar o seu rico espólio tradicional de modo a ligá-lo ao património arqueológico do concelho, concretamente o castelo. O desenvolvimento concelhio não se deve limitar e compartimentar a simples freguesias, mas visto com largueza do olhar e numa perspectiva global.

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