30 agosto 2013

Leituras de fim de verão: Guerra Junqueiro

O MELRO


          O melro, eu conheci-o:

Era negro, vibrante, luzidio,

          Madrugador, jovial;

          Logo de manhã cedo

Começava a soltar, dentre o arvoredo,

Verdadeiras risadas de cristal.

E assim que o padre-cura abria a porta

          Que dá para o passal,

Repicando umas finas ironias,

          O melro; dentre a horta,

          Dizia-lhe: "Bons dias!"

          E o velho padre-cura

não gostava daquelas cortesias.



O cura era um velhote conservado,

Malicioso, alegre, prazenteiro;

Não tinha pombas brancas no telhado,

          Nem rosas no canteiro:

Andava às lebres pelo monte, a pé,

          Livre de reumatismos,

Graças a Deus, e graças a Noé.

O melro desprezava os exorcismos

          Que o padre lhe dizia:

Cantava, assobiava alegremente;

          Até que ultimamente

          O velho disse um dia:



"Nada, já não tem jeito!, este ladrão

          Dá cabo dos trigais!

          Qual seria a razão

Por que Deus fez os melros e os pardais?!"



          E o melro entretanto,

          Honesto como um santo,

          Mal vinha no oriente

          A madrugada clara,

Já ele andava jovial, inquieto,

Comendo alegremente, honradamente,

Todos os parasitas da seara

Desde a formiga ao mais pequeno insecto.

E apesar disto, o rude proletário,

          O bom trabalhador,

Nunca exigiu aumento de salário.




Que grande tolo o padre confessor!

(Continua aqui)

3 comentários:

mc disse...

Se me é permitido, faço duas sugetões:

SELORES E UMA CASA




http://www.youtube.com/watch?v=DJDOzeJeCWQ

......

e


http://www.wook.pt/ficha/um-tiro-na-bruma/a/id/191072

O início do século XX em Portugal ficou marcado por inúmeros acontecimentos que provocaram grandes transformações políticas e sociais: a Implantação da República, em 1910, golpes de Estado e contra-golpes, a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial, as doenças que dizimaram famílias inteiras, ricos e pobres. É neste cenário conturbado com base em factos e personagens reais, que se movimenta a figura central da história, Amadeu. Na qualidade de médico em Macedo de Cavaleiros, a sua vida espelha bem as dificuldades que então havia em ultrapassar a escassez de recursos que assinala este período. Em torno de Amadeu gravitam muitas outras personagens que ilustram primorosamente a sociedade portuguesa de então, e em particular a transmontana, para o desenvolvimento da qual foi essencial a construção da Linha do Tua.

Anónimo disse...

Gosto muito do programa do Guerra Junqueira. Parabéns!

Fernando Gouveia disse...

Quando ainda não tinha lido do Guerra Junqueiro senão o poema "A moleirinha", que fazia parte do programa escolar da primária do meu tempo, tinha ouvido muitas vezes um disco de 78 rotações do meu pai, num monólogo cheio de humor de Vasco Santana,em que este actor misturava as letras de "O melro" e de "O fiel". O efeito era, obviamente, um texto de muito humor, quer pelo talento do saudoso actor, quer pelos versos escolhidos e pela forma como foram misturados. Só muito mais tarde viria a ler os poemas que o JAM agora nos oferece. Se ainda conseguirem ouvir o disco do Vasco Santana (editado pela Brunswick), com o título "O melro e o fiel", não desperdicem a oportunidade.